quarta-feira, setembro 21, 2005

Felicidade, rebeldia e outras estórias


A minha comunhão solene

Depois de acabada a escola, ocorrida a morte da minha avó, senti que tinha, tanto quanto possível, que assumir o controlo da minha vida. Estudar, era tanto desejado como impossível, dada a oposição do meu pai. De repente, passei a bábá dos meus irmãos mais novos, o que assumi com resignação.
Só saía de casa para ir à catequese. Aos 13 anos fiz a comunhão solene. Era uma menina muito atenta na igreja e, por isso, desempenhei várias funções durante a cerimónia da comunhão. Cantei, sozinha, ao som do órgão e ao que parece, com o agrado de quem ouviu. Houve mesmo quem dissesse que a foi de fazer chorar os mais sensíveis...
A cerimónia foi linda, ainda hoje a recordo com saudade. Ainda assim, duas coisas me deixaram triste: a ausência da minha madrinha (que era a minha avó, já falecida, como vos contei) e a ausência do meu pai que se tinha zangado com a minha mãe e por isso não foi á igreja, acabou por não assistir à comunhão,foi só a minha mãe. Apesar disso, a cerimónia foi linda e muito marcante para mim.
Chegada a casa, já depois de terminada a cerimónia, o meu irmão, o primogénito, decidiu meter-se comigo, já nem me lembro bem porquê. Apesar de limitada nos movimentos pelo vestido comprido (era um vestido tipo de noiva, com véu e tudo), não hesitei: atirei-me a ele e foi uma bela sessão de pancadaria!! Como poderão concluir, sujei o vestido todo e levei uns tabefes do meu pai, mas foi bem feito para mim. Só mesmo eu para fazer aquilo, no dia da comunhão e com o vestido por tirar! Muito tabefe levei eu, devido a este feitio ríspido!

Sempre fui muito curiosa, por vezes ao extremo. Ainda hoje assim sou, e boas razões teria para ter mudado, porque me dei muitas vezes mal com tanta curiosidade. Na casa dos meus pais criavam-se todo o tipo de animais domésticos. Os que mais me fascinavam eram os pintainhos, que eu adorava ver. Achava-os a coisa mais linda do mundo. Um dia, como de costume, a minha mãe foi dar a volta aos ovos das galinhas no choco, para ver se haviam alguns "picados", sinal que os pintainhos estariam para nascer. A minha mãe achou que estavam mesmo quase a picar, e que, à noitinha, já deveriam estar picados. Isso ficou-me na cabeça... a curiosidade despertou. Assim que a minha mãe saiu fui-me ao ninho, tirei a galinha e descasquei os ovos, para que os pintainhos nascessem mais rapidamente. No dia seguinte, quando a minha mãe lá foi, deparou com o triste espectáculo de 18 ovos descascados e 18 pintos todos mortos... Foi fácil para minha mãe adivinhar a culpada e lá levei mais uns bons tabefes.

A minha vontade de estar no contra, de seguir sempre as minhas regras, não as que me impunham (excepto no caso dos pais, claro, aí tinha que ser, mas não deixava, mesmo assim, de refilar) levou a alguns episódios engraçados. Todos tínhamos a responsabilidade de fazer determinados trabalhos em casa. No Inverno, sendo menor o trabalho nos campos, algumas das criadas ajudavam nesses trabalhos, mas no Verão tocava-nos a nós fazê-lo. Um dia a minha mãe mandou-me lavar umas escadas de madeira. Claro que eu sabia como as deveria lavar, tantas vezes tinha visto as criadas e a minha mãe a fazê-lo. Quando me aprestava para começar a lavar as escadas, chegou lá a casa a mãe da minha mãe, que tinha a mania de me dar ordens e procurar obrigar-me a fazer os trabalhos ao gosto dela. Eu detestava isso! No tal dia da lavagem das escadas, lá teve ela a infeliz ideia de me dizer como eu devia fazer. "Começas aqui de cima e vais certinha até lá abaixo!". Apesar do óbvio bom senso de tais indicações, a veleidade de tentar mandar em mim, fez com que me fosse dando uma coisa. Tinha de fazer alguma coisa, para a contrariar, pensei! E fiz! Decidi lavar as escadas de baixo para cima, porque em mim ninguém mandava! Ainda tive medo que o meu pai chegasse a meio e lá viessem mais uns tabefes, mas isso não aconteceu e lá consegui lavar aí uns 20 degraus de baixo para cima!

Zangava-me muitas vezes com os meus irmãos e, não sei porquê, até os mais pequenos andavam atrás de mim para me apanhar e entregar-me, como troféu, aos mais velhos. Era uma batalha desigual, eu contra 7 irmãos, mas nem isso me fazia desistir. Se não os conseguia enfrentar, andava fugida. Muitas vezes só podia entrar em casa escoltada pelo meu pai, pois com a minha mãe eles davam-me à mesma. Mas nem isso me fazia dobrar, ou eu vencia a minha, ou havia guerra contra todos!
Um dia o meu irmão mais velho zangou-se comigo e deitou-me as bonecas todas fora, o palerma! Que estrago, que confusão houve lá em casa! Mas vinguei-me com lucro: peguei no carrinho de rolamentos que ele tinha e deitei-o a um poço. Ainda hoje não sabe ele onde foi parar o carrinho! Tinha que ser olho por olho, dente por dente!

Em casa dos meus pais rezava-se o terço, à noite, à volta da lareira, no Inverno. Todos estavam presentes, até os criados. Na reza do terço havia um momento em que todos tínhamos de nos levantar, e depois voltar a sentar-nos. A coisa era feita de forma tão rápida que, por vezes, caíamos todos ao chão, incluindo a minha mãe que ia de arrasto! Ainda hoje me rio disso com gosto. Éramos aí uns 10 no meio da cozinha, estendidos pelo chão fora. A minha mãe nem sabia se havia de se rir, se de nos bater a todos, mas quase sempre acabávamos à gargalhada.

sexta-feira, setembro 16, 2005

Uma nova fase: a autonomia conquistada!




No ano seguinte, de novo na 4ª classe. Apesar de ter estado 3 meses internada no hospital, de Fevereiro a Abril, e ter estado doente praticamente todo o ano, fiz o exame da 4ª classe. Passei com distinção, fui a melhor aluna da escola onde fiz o meu exame, que foi realizado por alunos de 10 freguesias de Braga. Recordo-me tão bem da prova oral! A prova incidiu sobre o rei D. Dinis e também sobre os caminhos de ferro, temas escolhidos por mim. Quando os escolhi, em particular o D. Dinis, lembro-me da troca de olhares entre as professoras, e de me terem inquirido sobre a razão da escolha. Da resposta também me recordo: sempre achei que sobre D. Dinis havia muito para contar e gostava muito de tudo o que com ele se relacionava.

No início desse ano lectivo, alguns colegas começaram a ter explicações com a professora para seguir os estudos, pois tinha de se fazer o exame de admissão ao liceu. Não fiz o pedido para ter essa preparação. Por não o ter feito, a professora perguntou-me se eu não iria continuar a estudar. Tive de lhe dizer que não sabia, uma vez que o meu pai não tinha dito nada. A professora chamou o meu pai à escola, para lhe dizer que achava que eu era uma criança muito inteligente, a quem não se deveria cortar as asas, pelo que a melhor decisão deveria ser a do prosseguimento dos estudos. A resposta do meu pai foi a esperada, infelizmente tão frequente, para tanta gente, à altura: "tenho muitos filhos, e para ela ir estudar teria de os deixar ir a todos. Ela tem os irmãos para tomar conta, é isso que vai fazer!".
Para mim a desilusão, mais uma (!), foi enorme! Mas a professora, apesar da decisão anunciada do meu pai, deu-me as explicações à mesma. Infelizmente, acabado o ano, o pré-anúncio confirmou-se: o meu pai não deixou que me matriculasse no liceu. Recordo-me da frustração e revolta que senti, mas fiz uma promessa a mim própria - voltaria a estudar quando atingisse a maioridade. Promessa que viria a cumprir!

Esta situação, associada à debilidade física já descrita, pode ter sido a causa de alguns problemas de saúde que até hoje persistem, e de que nenhum dos vários médicos consultados descobriu a causa. Um dos mais desagradáveis é o que acontece em momentos de grande stress: perco a visão por momentos, quando a recupero tenho amnésia (que acaba por ser passageira), e subsistem umas dores de cabeça fortíssimas, que ficam o resto do dia.

Aos meus 14 anos morreu a minha amada Avózinha, a minha estrela, a minha protectora. Partiu, vítima de um ataque cardíaco. Depois disso senti-me muito sózinha no mundo. Ainda hoje sinto muito falta dela, ainda a chamo em momentos de dificuldade e desespero! Esta morte gerou em mim uma mudança completa! Passei a contar apenas comigo, passei a arranjar um espaço na minha mente só meu, onde ninguém entrava. Apesar de ouvir o que me diziam e estar atenta aos conselhos dados e cumprir sempre os meus deveres, as decisões sobre a minha vida pessoal passei a tomá-las eu. Até hoje permaneço assim, sou eu quem decide sobre a minha vida, não admito interferências venham de onde vierem. Posso ouvir o que têm para me dizer, e posso até aceitar as opiniões e conselhos, mas só depois de tudo filtrado e ajustado áquilo que penso que é o melhor. Às vezes, até exagero e acabo a não fazer o que é mais correcto, só para me assegurar a mim própria de que não são os outros que decidem a minha vida!

quarta-feira, setembro 07, 2005

O internamento hospitalar e a maldade de uma professora


A minha passagem pelo piano

Nessa altura achava que a minha mãe e irmãos não gostavam de mim,era essa a mensagem que me passavam as tias, essa é uma ideia que toda a vida me tem perseguido. Talvez esteja errada, talvez tenha sido eu quem sempre se afastou deles, e os rejeitei. Quando estava com a minha avó, eu era o centro das atenções. Em casa dos meus pais deixei de ser. Eramos muitos, e eu era das mais velhas.

Aos 10 anos comecei a definhar. Aos 11 fiquei muito doente, e com 12 fui internada no hospital. Estive internada mais ou menos 3 meses. Deixei de comer por completo, não conseguia andar e para me fazer a cama tinham de me pegar ao colo. Passei dias dos quais de nada me lembro. Como que por milagre, numa visita da minha avó, ela levou-me uma peça de coelho, e não é que eu comi?!

Com 12 anos pesava 22 kilos. Todos pensavam que eu ia morrer. Chegaram a tirar a minha mãe em braços do meu quarto do hospital. Tinha dificuldade em abrir os olhos, em virar a cabeça. Só dormia e ouvia, às vezes, as conversas em meu redor. Adormecia de repente, acordava por breves minutos.
Finalmente acabaram por me detectar um tumor que, depois de analisado, se concluiu que era benigno. Removeram-no, comecei a melhorar, e pude abandonar o hospital. Chegada a casa, comecei a aceitar um pouco tudo e todos com mais normalidade. Acho que foi preciso ter estado doente para sentir carinho.

Na quarta classe não passei de ano, não por não ser boa aluna, mas porque a professora era muito má, batia muito em todos. Não me posso queixar muito da "porrada", porque não me tocou lá muito mas, na mesma sala, um dos meus irmãos, que andava na segunda classe ( as salas tinham sempre 2 anos escolares) "levava" bastante. Isso fazia com que eu chorasse muito e que batesse também nas outras raparigas. Fazia coisas terríveis: dava-lhes grandes estaladas, arrancava-lhe os brincos ao puxão, furava-lhes a orelha com as unhas. Eu era terrível, um pavor!

O meu irmão andava sempre com um casacão vestido, que nunca tirava, mesmo às refeições. Um dia, o meu pai zangado, não sei porquê, obrigou-o a tirar o casaco. Quando o tirou, o meu pai reparou ele tinha os braços e costas todas pretas. Primeiro o meu pai pensou que era o meu irmão que precisva de tomar banho. Levou-o ao lavatório e obrigou-o a lavar-se. No entanto, as marcas não saiam. Num grande pranto o meu irmão contou ao meu pai que era a professora que lhe batia. O meu pai perguntou-me e eu confirmei. Perguntou também se eu também tinha o mesmo tratamento, ao que respondi negativamente.
O meu pai foi conversar com os pais de outras crianças e resolveram ir à escola, reclamar com a professora, por bater tanto nas crianças. O resultado foi a professora ter mandado todos aqueles cujos pais tinham participado na "reclamação" para as filas traseiras, e nunca mais ter querido saber de nós. Não corrigia os trabalhos, abandonou-nos por completo. Isto aconteceu por volta de Novembro.
Ir às aulas passou a ser o mesmo que não ir. Nos dias de sol, mesmo de muito sol, a professora passou a deixar aberta a persiana que impedia o sol de dar nas últimas filas. Dizia que o sol nos fazia muito bem. Se algum de nós, antes de ela entrar, a baixasse, ela subia-a de novo, e dizia-nos que, se quisessemos sombra, poderíamos bem esperar pelo fim da aula. Era terrível estar nessas aulas.

Com todo este cenário, acabei por perder o ano. Não foi por não saber, como podem depreender desta narrativa, mas por pura maldade da professora.