segunda-feira, fevereiro 27, 2006

África e o fascínio da liberdade


Depois do casamento da minha irmã, senti-me muito sozinha. Comecei a ter muitas responsabilidades, para as quais não estava preparada.
Comecei por ter de representar a minha mãe, na ausência dela, o que não me agradou, muito porque isso representou ficar sem um pouco da minha liberdade. Passei a ser, também, a responsavel pela casa, na ausência dos meus pais. Fui, assim, obrigada a tornar-me dona de casa à força.

Até esta altura sempre tinha sido "a segunda", uma espécie de "patinho feio" da casa. O meu pai via-me como alguém que não se adaptava à vida na quinta, o que levava a que nunca fosse chamada para nada. Isso dava-me uma certa satisfação, pois detestava aquela vida. Com o casamento da minha irmã, lá tive eu de assumir, forçada, o lugar dela. A partir dessa altura passei a sentir-me a rapariga mais infeliz do mundo. Achava que o mundo estava contra mim, até porque não tinha jeito nenhum para as novas "funções" de que tinha sido incumbida.
Foi um desastre total. Os meus irmãos não me respeitavam. Eu não tinha qualquer inclinação para ser a "patroínha", logo não cumpria em termos as ordens que me eram dadas. Comecei por sofrer todo o tipo de represálias dadas pelo meu pai, até físicas. Na opinião dele era uma maneira de me tornar mulher responsável e preparada para a vida. Foi um mau bocado, sofri bastante, bastante mesmo.

A minha liberdade surgiu porém com a vinda de uns tios meus, de África. Esses tios vieram de Luanda, visitar a familia, coisa que faziam mais ou menos de 3 em 3 anos. Pensei imediatamente que podiam ser a minha salvação, quando ouvi falar na chegada deles. Podia ter chegado a minha hora, desde que conseguisse convencer o meu tio a levar-me com ele, quando voltasse para África. No dia em que chegaram a casa dos meus pais, eu senti-me estranha. Passei de mal humorada a bem disposta e muito atenciosa com todos. Eu senti isso e penso que a minha mãe também sentiu. O meu tio era o irmão mais velho da minha mãe. Eles ficaram lá em casa a passar uns dias. Tratei de pensar numa estratégia para convencer o meu tio a pedir ao meu pai para me deixar ir com eles para Luanda. Para meu espanto, o meu tio e restante familia ficaram felizes com o meu pedido e o meu tio foi pedir ao meu pai. Ora o meu pai, com o seu ar de desinteressado, disse logo que sim, que não sabia o que fazer comigo, pois eu não tinha jeito algum para o tipo de vida que levava.

Desde aí até à altura de embarcar foi um tempo super feliz. Tive de tratar de muitos documentos, apanhar um monte de vacinas, arranjar roupa para o clima de África. Tudo que me pudessem dizer de mal da decisão de ir, nem queria ouvir, pois queria sair dali e quanto mais rápido melhor, não fosse o meu pai arrepender-se e voltar atrás na decisão de me deixar partir. Havia também o reverso da medalha: tinha pena de deixar a minha mãe e os meus irmãos mais novos. O mais novo tinha apenas 18 meses!

Chegou o dia de os meus pais me levarem a Cascais, á casa dos meus tios, para tratar dos documentos em falta e para eu tomar as vacinas que faltavam. Foi necessário também ir à secretaria do Ultramar para poder embarcar na companhia dos meus tios, que eram funcionários do estado e podiam levar-me e sem ter de pagar a viagem, que seria feita de barco.
Saí de Braga no dia 28 de Junho, um domingo, manhã cedo. Fui todo o caminho a cantarolar e rir. A certa altura, a minha mãe segredou-me: "Vais toda contente não vês o teu pai de lágrima no olho?!" Eu nem olhei para a cara da minha mãe e não ousei olhar para nenhuma das outras pessoas que iam no carro. Pelos vistos iam todos a chorar. Eu era a única que estava feliz.

Chegamos a Lisboa por volta das 10 horas. Fomos à missa, e de seguida para casa dos meus tios. Aí chegados, descarregamos as minhas coisas, fomos recebidos por toda a familia e fomos almoçar. Depois do almoço pediram para eu sair com as minhas primas, para os meus pais não se terem de despedir de mim. Nessa altura havia guerra em África, os nossos soldados tinham medo de ir para lá, contavam coisas horríveis, mas eu queria ir e não estava preocupada com isso. Saí então com as minhas primas, quando cheguei, tive um certo aperto no coração ao ver que a minha mãe já não estava uma lágrima de dor rolou no meu rosto.

No dia seguinte recebi um telefonema do meu pai, que eu não quis atender. Nesse telefonema, o meu pai disse ao meu tio que me queria ir buscar de volta, que não queria ficar sem mim, estava a chorar dizia que eu era a lembrança viva da mãe dele,que me deixaria cumprir o meu sonho de estudar e seguir a vida com que sempre tinha sonhado. Era tarde demais para isso,tinha tido tantos anos para me agradar e não o fez e apenas em 12 horas tinha mudado! Não...eu segui o meu rumo via Luanda,ao encontro da realização dos meus sonhos, e no dia 5 de Julho embarquei no Paquete Infante D. Henrique.