domingo, novembro 26, 2006

Liberdade em falta, ciume e maldade em excesso

Em casa dos meus pais tinha uma liberdade que não valorizava. Era uma liberdade total, para andar campos fora, correr, saltar, subir a uma árvore, gritar, cantar, ver televisão até à hora que me apetecesse, ir à noitada de S. João, enfim, uma liberdade sempre presente.

Se em Luanda adorava o meu trabalho, foi também lá que, qual pássaro preso em gaiola, me apercebi, cruamente, da falta que me fazia a liberdade antiga. Que saudades tive eu, de tudo o que tinha a ver com a vida em casa dos meus pais. Até das constantes brigas com os meus irmãos tive saudades, mas acho que o que mais saudades me provocou era a autenticidade sempre presente, sem ponta de ironia, hipocrisia, falsidade ou cinismo, e a privacidade que tinhamos uns em relação aos outros. E quando o meu pai ou Mãe batia num eramos um por todos todos por um, sempre nos defendemos uns aos outros, nunca por nunca nos acusamos mutuamente, eramos genúinos e leais.

O ambiente no escritório onde trabalhava era muito bom. Os meus colegas eram carinhosos e recordo com especial saudade uma amiga, com quem gostaria de ter tido a possibilidade de trocar moradas, não fosse a precipitada saída de Luanda, nos quentes dias pós-revolução na metrópole. A Felismina, assim se chamava, era do Porto, onde morava na Rua dos Bragas, e estudava economia. Nunca mais soube dela desde que saí de Luanda, e as saudades dessa querida amiga são mais que muitas. Era maravilhosa comigo. Costumava levar-me um miminho depois do almoço – ora umas fatias de delicioso bolo, ora fruta, ora biscoitos muito bons, feitos pela avó, e de que eu gostava muito.
Das pessoas que comigo conviviam em Luanda, só a Felismina conhecia o meu sofrimento pela distância da minha família, e não foi difícil que ela própria se começasse a aperceber de que não tinha grande liberdade. Eram frequentes os convites que me fazia para que a acompanhasse nas idas ao cinema, mas que resultavam invariavelmente na minha impossibilidade de ir, dada a recusa dos meus tios em permitir tais saídas. A minha amiga Felismina era mesmo um raio de luz na penumbra das minhas relações pessoais em Luanda, e quem me dera poder voltar a encontrá-la, de novo, agora, passados tantos anos desde que a vi, pela última vez, na bela Luanda.


Eu e a minha prima Carlinha


Uma das minhas primas encarnava, sem dificuldade, o oposto da Felismina e deu-me a conhecer que as pessoas podem ter sentimentos que, até então, na minha simples ingenuidade, desconhecia. Se eu tinha completa vontade de trabalhar, ajudar os meus tios, estar sempre disponível para coisas que as minhas primas não estavam assim tão disponíveis, isso era sumariamente avaliado com um “ela é uma cínica, uma sabidona”. Sabia bem que enchia o meu tio de queixas sobre o que eu supostamente fazia, e ficou para mim claro que a motivação para tal comportamento era muito simples: o ciúme que tinha de mim, como mulher.
Nunca fiz nada na vida com segunda intenção, nem com vontade de ferir quem quer que fosse, pelo que o comportamento da minha prima me deixava profundamente sentida, e agravava as minhas saudades de casa, da minha família e da liberdade de que tinha gozado até à partida para Angola. Os sentimentos negativos acumulavam-se, a minha revolta era grande mas a verdade é que estava presa em Luanda, não tinha para onde fugir e nada mais me restava senão “aguentar” tanto quanto pudesse. Os meus tios também não ajudavam grande coisa na melhoria desta situação pois se, por um lado, “corriam” a minha prima, por outro lado não me poupavam a algumas reprimendas, apesar de eles próprios acabarem por reconhecer que eu nada fazia de mal, que o problema era a ciumeira da minha prima, e que o melhor era eu afastar-me dela o mais que pudesse, e evitar os confrontos a todo o custo.

O meu tio controlava razoavelmente bem a minha prima. A situação piorava, no entanto, quando ele tinha de se ausentar para o interior, onde ficava por períodos de tempo de duração variável. Nessas alturas aumentava a minha vulnerabilidade, porque a minha tia não conseguia ter “mão” nela, e as provocações surgiam, em catadupa, tudo servia de pretexto. Um dia desses, em que o meu tio estava para Cabinda, a confusão foi tal à mesa, ao almoço, nem posso precisar exactamente porquê, mas sei que mal consegui almoçar! Mas lembro que eram lulas (ainda hoje detesto lulas, por via disso). Quando cheguei ao trabalho ia transtornada, angustiada. O Sr. Teixeira, o gerente, foi ao pé de mim para me ordenar uns trabalhos, só que ao chegar ao pé de mim reparou que eu não estava bem e perguntou de imediato se me estava a sentir bem. Afastou-se e deu ordem a uma colega para ir falar comigo, para ver o que se passava. Eu estava apática e sem reacção, chamaram e Felismina para ver se conseguia que eu falasse. Ela optou por me trazer até ao jardim, mas eu ao entrar no elevador desmaiei, no que foi a primeira e única vez que tal me aconyeceu em toda a vida. Sentadas num banco, no jardim, ela tentou que eu falasse mas eu não conseguia balbuciar uma palavra, só acenava com a cabeça.
A Felismina sugeriu levar-me a passar a tarde na casa dela, talvez por se ter apercebido que eu estava num estado lamentável mas, por medo de represálias quando "elas" descobrissem, disse que não, que preferia ir para a casa dos meus tios. Contra a sua vontade, lá me levou.
Chegadas a casa dos meus tios, encontrámos a minha tia e a prima a Graciete. A Felismina era pessoa de poucas palavras, tinha muito nível e era muito educada. Quando elas se aproximaram do carro e perguntaram o que se passava, ela respondeu, com a verdade, e disse:"Não sei, só sei que desmaiou e não fala". Entretanto, eu já tinha entrado em casa e e ido para a cama, onde desatei num choro compulsivo.A minha tia e prima abeiraram-se de mim, disseram-me tantas e tantas, que eu entrei em estado de choque. Disseram até que eu teria manipulado a minha amiga, e achavam-me culpada por ela não ter sido simpática com elas. Sei que gritei a tarde toda, chamei por todos os meus familiares de Portugal - pai, mãe, irmãos e tios - numa gritaria em que pedi a cada uma para me ir buscar. Claro, "elas" ficaram aflitas e deram-me um valium 10, a ver se adormecia... de modo também a que a situação acabasse o mais rapidamente possível, não fosse o meu tio chegar.
Nem com o Valium adormeci. Continuei a gritar, era valente uma crise de nervos,e uma grande carência afectiva. Só ao terceiro Valium fraquejei, mas ainda sem dormir, o que não aconteceu sequer durante a noite. Quando o meu tio chegou, queixaram-se da minha amiga, que não teria sido simpática com elas, nem sequer lhes teria falado. Apesar de ser mentira, lá levei uma reprimenda, desta vez pela amiga, que era uma pessoa educada, e muito delicada, e que sempre gostou de mim e me tratou bem.
Na sequência deste episódio, fiquei dois dias de cama e passados 15 dias, apanhei uma pneumonia bastante grave, quase ia desta (daquela) para melhor.

Num outro dia, dia fui com os meus primos à matiné, no clube da praia do Bispo. Sem o sabermos, a minha prima foi à mesma matiné, com o marido (ela era casada, mas passava o dia em casa dos pais, com as filhas). Acabámos por nos encontrarmos todos à saída do cinema, com alguma surpresa nossa. O pedido de boleia que fizemos foi rejeitado com a rispidez habitual, pelo que voltámos a casa a pé. Quando lá chegamos, o ambiente era pesado, e eu pensei imediatemente que alguma coisa ia acontecer e comigo, porque se tivesse sido com os primitos que me tinham acompanhado ao cinema, eles teriam sido recebidos à “chapada”.


O Cinema Restauração, onde iamos às matinés


O interrogatório aos meus primos começou em seguida, e disso me apercebi por o ter escutado quando me dirigia para a cozinha. O meu primo Mateus, incentivado pelo meu tio a “contar a verdade”, ignorando a verdade pretendida, limitava-se a responder que nada tinha acontecido, pelo que foi premiado com uns quantos tabefes e uma ida directa para a cama, sem jantar. A Alice Maria, face ao mesmo convite, ainda se atreveu a sugerir que tudo não passava de “coisas da cabeça doente da Graciete”, mas lá teve direito aos tabefes da ordem. Faltava eu...
O interrogatório teve a presença da “acusadora” e o meu tio convidou-me de imediato a esclarecer “o escandâ-lo” que eu teria feito no cinema, com um rapazito com quem namorisquei. Os meus primos não confirmaram nada, como é óbvio, porque nenhum escândalo havia para confirmar, mas a minha prima insistia e o marido mantinha-se calado que nem um rato. Apesar da insistência do meu tio, nada havia para confirmar, a acusação não tinha pés nem cabeça, mas ainda assim apanhei uma valente descompostura e lá fui, também, para a cama sem jantar.
Tenho de confessar que senti uma enorme vontade de bater na minha prima, pela pura maldade do comportamento dela. Essa vontade, aliás, não era original, mas sempre me contive, mais por respeito aos meus tios.

Tanta maldade, no entanto, teve um forte efeito em mim. Acabei por ganhar uma depressão efiquei anémica, num ano, passei dos 63 para 50 Kg. Tive de tomar comprimidos para conseguir comer, pois perdera completamente o apetite de meter alimentos á boca.