segunda-feira, março 20, 2006

A magnífica viagem e o despertar para a crua realidade

No dia 5 de Julho, parti então rumo a Luanda.
Foi uma viagem fantástica, como nunca tinha feito, até então. Passados todos estes anos, ainda continuo a dizer que foi a viagem mais maravilhosa da minha vida. Embarcámos por volta das 11 horas, não posso precisar que dia de semana era. Entrámos no navio e fizeram-se, a bordo, as despedidas dos familiares que lá se deslocaram com esse propósito. Éramos 7 viajantes, entre tios e primos.


À partida de Lisboa...


Assisti a todo o processo de partida do navio, não quis falhar nada. Aquele toque típico que os navios dão quando largam foi uma coisa marcante, na minha cabeça. Foi como se o navio estivesse a dizer aos que ficaram no cais, "eu vou levá-los".
A sensação de passar por baixo da ponte, à altura, Salazar e depois a saída para o mar, tudo isso foi excitante para mim. Apreciei cada segundo, cada metro de avanço do navio, rumo a Angola.
Algum tempo depois da partida, os meus tios disseram que era altura de se ir para dentro. Lá fomos. Aproveitei para visitar então todos os cantos do navio acessíveis aos passageiros: a primeira classe, que luxo(!), com as paredes todas forradas a veludo, o chão com alcatifa vermelha, aposentos mais pareciam de reis e rainhas; a turística "A", onde eu viajava e a turística "B", que era a classe mais económica. A partir do primeiro dia de viagem, o acesso estaria limitado às duas classes turísticas.

A vida a bordo era magnífica, eu pelo menos assim a vi, à altura. Tinhamos 2 camarotes, cada um com 3 bliches. Como éramos 7, colocaram mais um sofá num dos camarotes, para podermos ficar juntos. O meu tio inscreveu-nos a todos para fazermos as refeições no primeiro horário, dos 3 existentes. Recordo a comida a bordo como sendo deliciosa, com um cheiro fantástico. O pão era sempre quente e saboroso.
os nove dias que a viagem demorou, eram vividos da seguinte forma:

Pela manhã tomávamos o pequeno-almoço ás 7,30. Ao fim íamos mais um pouco até ao nosso camarote para dar tempo que todas as pessoas se alimentassem. Depois por volta das 9,30 vínhamos para cima, ora passeávamos pelo convés, ou iamos jogar uma partida de cartas para a sala de fumo (assim era chamada). Depois ás 11,30 íamos almoçar, no fim do almoço dormiamos uma sesta - os meus tios assim obrigavam - e por volta das 15 horas voltávamos a subir. Depois dividíamos o tempo ora em banhos na piscina, banhos de sol, e sempre os fantásticos passeios no convés, a olhar o mar alto vi golfinhos no alto mar . Ao fim da tarde admirar o pôr do sol sobre o oceano é algo indescritível! Eu adorava estar debruçada na proa do navio e ver a frente do barco a cortar a água.
Ás 15,30 íamos lanchar e depois voltava a diversão: jogos, passeios, piscina. Às 18 horas era o jantar. Depois o serão era passado a ver cinema, ou em bailes, ou ainda a jogar “Loto”, ou às cartas.

Ao segundo dia de viagem, fizemos o treino dos coletes salva-vidas. Não achei grande piada e incentivada por uma prima desobedeci ás ordens dadas pela tripulação. Fomos repreendidas. Eu era nova naquelas andanças, mas ela não. O comissário acabou por dizer, num tom inconfundível de reprovação: "vou escrever no livro que duas jovens desobedeceram aos treinos de salvamento e que se alguma coisa acontecer durante a viagem vocês serão responsáveis pela vossa segurança". Exigiu, depois, que voltássemos para o camarote. Fiquei apavorada mas nada podia fazer, pois era a minha prima quem estava no comando da desobediência e rebeldia, e eu não sabia onde estavam os meus primos e tios, para poder "escapar". Ao deslocarmo-nos para o camarote as portas do navio foram-se fechando e as lampadas apagadas, como parte do exercício, o que aumentou o estado de ansiedade em que me encontrava, eu estava mesmo apavorada.

Ao atravessarmos o Equador o clima ficou horrível, com uma humidade insuportável.
Os veteranos em viagens de navio praxaram os iniciados com o "Baptismo de bordo".
O meu tio escondeu-me no camarote para me proteger das “sevícias “ a que eram sujeitos os iniciados. Lamentei, mas não assisti â praxe. Sei apenas que consistia em colocarem uma capa vermelha e verde nos iniciados e depois dizerem umas palavras enquanto outros deitavam quantas mistelas podiam na cabeça deles, desde farinha a ovos. No fim atiravam com os iniciados para a piscina, perante as palmas e gargalhada geral.

A primeira noção de que, finalmente, estava fora da proteção dos meus pais e irmãos surgiu aquando da visita feita no primeiro ponto de paragem do percurso rumo a Angola: Foi no Funchal. Só tinhamos uma manhã para estar atracados e para uma visita relâmpago. Aproveitei para ir a uma farmácia, comprar uma pinça para arranjar as sobrancelhas porque não tinha levado nenhuma, uma vez que em casa havia apenas uma para todas nós.
Primeira confusão. Acredito que, pelo menos aos olhos de alguns dos meus primos, seria vista, talvez, como provinciana. Não me tinha nessa conta, procurava vestir-me com elegância e seguindo a moda da altura, tinha boas maneiras (o que, graças a Deus, penso que hoje ainda conservo). Mas lá saimos, então do navio os 5, eramos todos jovens, e dirigimo-nos a uma farmácia. Comprámos o que queríamos e depois fomos dar um pequeno passeio, que achei muito bonito, um paraíso na terra o Funchal achei eu. O passeio foi divertido, mas eu senti qualquer coisa que nunca na vida tinha sentido, vindo de um dos meus primos: sarcasmo e desdém. Chegou mesmo ao ponto de me "humilhar" publicamente, com um tom arrogante e malcriado, o que me desagradou profundamente.


Chegada ao navio, recolhi-me ao camarote e fui escrever uma carta à minha mãe, contando-lhe o sucedido. Algo fez desconfiar a minha tia, que acabou por localizar a carta entre as minhas coisas, e passei de vítima a ré. Foi um mau bocado por que passei, porque me acusaram de estar a contar assuntos que só a eles diziam respeito, e que, apesar de contar o bom tratamento que me davam, também contava o vexame pelo qual os meus primos me tinham feito passar. A minha tia rasgou a carta na minha frente e mal fiquei sózinha no camarote, chorei amargamente a falta da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos, nunca tinha passado por uma situação semelhante. E começei a partir desse dia a saber, a ter a certeza, de que a vida não é cor de rosa, e que a hipocria e o cinísmo pareciam ir ser uma constante. Apercebi-me, também, que até aquela altura tinha estado protegida, mas que essa protecção tinha sido perdida quando escolhi sair da casa dos meus pais, para ir ao encontro da minha aventura. Estava sózinha e muito longe, e por muito alto que gritasse, os meus gritos nunca chegariam aos ouvidos dos meus protectores habituais...

A partir daí a minha tia passou a fornecer-me papel e caneta, sempre que eu queria escrever para casa, mas cedo me apercebi de que isso não passava de uma artimanha para ler o que eu contava à minha mãe e saber o que se passava na minha cabeça, eu não estava habituada a isso nos meus pais lá, apesar de viver-mos no campo, sempre se respeitou o espaço de cada um e ninguém nunca jamais abriu correspondencia de quem fosse, nem os meus pais faziam tal coisa,eu nunca usei ler uma carta da minha irmã por grande que fora a minha curiosidade, ela contava se queria e quase sempre contava, caso o não fizesse era para respeitar.


À chegada a Luanda...


Apesar deste episódio, a viagem prosseguiu, magnífica, tendo a chegada a Luanda ocorrido a 15 de Julho, cerca das 23 horas. Quando avistei os meus outros primos, à espera no cais, desatei a chorar. Chorei tanto, tanto! E enquanto o meu tio me procurou acalmar o choro, abraçando-me, a minha tia aproximou-se com um ralhete: "vê se te comportas, que estão ali as tuas primas!". Foi talvez o fim anunciado do ar romântico da aventura iniciada em casa dos meus pais. Fiquei convencida que essa aventura ia ser toalmente diferente do que esperara inicialmente, mais dura e até cruel e fiquei com a sensação que me tinha metido em algo que podia vir a lamentar... mas se alguma coisa não sou, hoje ainda, nem era à altura, é de voltar atrás ou de desistir dos meus sonhos!