domingo, novembro 26, 2006

Liberdade em falta, ciume e maldade em excesso

Em casa dos meus pais tinha uma liberdade que não valorizava. Era uma liberdade total, para andar campos fora, correr, saltar, subir a uma árvore, gritar, cantar, ver televisão até à hora que me apetecesse, ir à noitada de S. João, enfim, uma liberdade sempre presente.

Se em Luanda adorava o meu trabalho, foi também lá que, qual pássaro preso em gaiola, me apercebi, cruamente, da falta que me fazia a liberdade antiga. Que saudades tive eu, de tudo o que tinha a ver com a vida em casa dos meus pais. Até das constantes brigas com os meus irmãos tive saudades, mas acho que o que mais saudades me provocou era a autenticidade sempre presente, sem ponta de ironia, hipocrisia, falsidade ou cinismo, e a privacidade que tinhamos uns em relação aos outros. E quando o meu pai ou Mãe batia num eramos um por todos todos por um, sempre nos defendemos uns aos outros, nunca por nunca nos acusamos mutuamente, eramos genúinos e leais.

O ambiente no escritório onde trabalhava era muito bom. Os meus colegas eram carinhosos e recordo com especial saudade uma amiga, com quem gostaria de ter tido a possibilidade de trocar moradas, não fosse a precipitada saída de Luanda, nos quentes dias pós-revolução na metrópole. A Felismina, assim se chamava, era do Porto, onde morava na Rua dos Bragas, e estudava economia. Nunca mais soube dela desde que saí de Luanda, e as saudades dessa querida amiga são mais que muitas. Era maravilhosa comigo. Costumava levar-me um miminho depois do almoço – ora umas fatias de delicioso bolo, ora fruta, ora biscoitos muito bons, feitos pela avó, e de que eu gostava muito.
Das pessoas que comigo conviviam em Luanda, só a Felismina conhecia o meu sofrimento pela distância da minha família, e não foi difícil que ela própria se começasse a aperceber de que não tinha grande liberdade. Eram frequentes os convites que me fazia para que a acompanhasse nas idas ao cinema, mas que resultavam invariavelmente na minha impossibilidade de ir, dada a recusa dos meus tios em permitir tais saídas. A minha amiga Felismina era mesmo um raio de luz na penumbra das minhas relações pessoais em Luanda, e quem me dera poder voltar a encontrá-la, de novo, agora, passados tantos anos desde que a vi, pela última vez, na bela Luanda.


Eu e a minha prima Carlinha


Uma das minhas primas encarnava, sem dificuldade, o oposto da Felismina e deu-me a conhecer que as pessoas podem ter sentimentos que, até então, na minha simples ingenuidade, desconhecia. Se eu tinha completa vontade de trabalhar, ajudar os meus tios, estar sempre disponível para coisas que as minhas primas não estavam assim tão disponíveis, isso era sumariamente avaliado com um “ela é uma cínica, uma sabidona”. Sabia bem que enchia o meu tio de queixas sobre o que eu supostamente fazia, e ficou para mim claro que a motivação para tal comportamento era muito simples: o ciúme que tinha de mim, como mulher.
Nunca fiz nada na vida com segunda intenção, nem com vontade de ferir quem quer que fosse, pelo que o comportamento da minha prima me deixava profundamente sentida, e agravava as minhas saudades de casa, da minha família e da liberdade de que tinha gozado até à partida para Angola. Os sentimentos negativos acumulavam-se, a minha revolta era grande mas a verdade é que estava presa em Luanda, não tinha para onde fugir e nada mais me restava senão “aguentar” tanto quanto pudesse. Os meus tios também não ajudavam grande coisa na melhoria desta situação pois se, por um lado, “corriam” a minha prima, por outro lado não me poupavam a algumas reprimendas, apesar de eles próprios acabarem por reconhecer que eu nada fazia de mal, que o problema era a ciumeira da minha prima, e que o melhor era eu afastar-me dela o mais que pudesse, e evitar os confrontos a todo o custo.

O meu tio controlava razoavelmente bem a minha prima. A situação piorava, no entanto, quando ele tinha de se ausentar para o interior, onde ficava por períodos de tempo de duração variável. Nessas alturas aumentava a minha vulnerabilidade, porque a minha tia não conseguia ter “mão” nela, e as provocações surgiam, em catadupa, tudo servia de pretexto. Um dia desses, em que o meu tio estava para Cabinda, a confusão foi tal à mesa, ao almoço, nem posso precisar exactamente porquê, mas sei que mal consegui almoçar! Mas lembro que eram lulas (ainda hoje detesto lulas, por via disso). Quando cheguei ao trabalho ia transtornada, angustiada. O Sr. Teixeira, o gerente, foi ao pé de mim para me ordenar uns trabalhos, só que ao chegar ao pé de mim reparou que eu não estava bem e perguntou de imediato se me estava a sentir bem. Afastou-se e deu ordem a uma colega para ir falar comigo, para ver o que se passava. Eu estava apática e sem reacção, chamaram e Felismina para ver se conseguia que eu falasse. Ela optou por me trazer até ao jardim, mas eu ao entrar no elevador desmaiei, no que foi a primeira e única vez que tal me aconyeceu em toda a vida. Sentadas num banco, no jardim, ela tentou que eu falasse mas eu não conseguia balbuciar uma palavra, só acenava com a cabeça.
A Felismina sugeriu levar-me a passar a tarde na casa dela, talvez por se ter apercebido que eu estava num estado lamentável mas, por medo de represálias quando "elas" descobrissem, disse que não, que preferia ir para a casa dos meus tios. Contra a sua vontade, lá me levou.
Chegadas a casa dos meus tios, encontrámos a minha tia e a prima a Graciete. A Felismina era pessoa de poucas palavras, tinha muito nível e era muito educada. Quando elas se aproximaram do carro e perguntaram o que se passava, ela respondeu, com a verdade, e disse:"Não sei, só sei que desmaiou e não fala". Entretanto, eu já tinha entrado em casa e e ido para a cama, onde desatei num choro compulsivo.A minha tia e prima abeiraram-se de mim, disseram-me tantas e tantas, que eu entrei em estado de choque. Disseram até que eu teria manipulado a minha amiga, e achavam-me culpada por ela não ter sido simpática com elas. Sei que gritei a tarde toda, chamei por todos os meus familiares de Portugal - pai, mãe, irmãos e tios - numa gritaria em que pedi a cada uma para me ir buscar. Claro, "elas" ficaram aflitas e deram-me um valium 10, a ver se adormecia... de modo também a que a situação acabasse o mais rapidamente possível, não fosse o meu tio chegar.
Nem com o Valium adormeci. Continuei a gritar, era valente uma crise de nervos,e uma grande carência afectiva. Só ao terceiro Valium fraquejei, mas ainda sem dormir, o que não aconteceu sequer durante a noite. Quando o meu tio chegou, queixaram-se da minha amiga, que não teria sido simpática com elas, nem sequer lhes teria falado. Apesar de ser mentira, lá levei uma reprimenda, desta vez pela amiga, que era uma pessoa educada, e muito delicada, e que sempre gostou de mim e me tratou bem.
Na sequência deste episódio, fiquei dois dias de cama e passados 15 dias, apanhei uma pneumonia bastante grave, quase ia desta (daquela) para melhor.

Num outro dia, dia fui com os meus primos à matiné, no clube da praia do Bispo. Sem o sabermos, a minha prima foi à mesma matiné, com o marido (ela era casada, mas passava o dia em casa dos pais, com as filhas). Acabámos por nos encontrarmos todos à saída do cinema, com alguma surpresa nossa. O pedido de boleia que fizemos foi rejeitado com a rispidez habitual, pelo que voltámos a casa a pé. Quando lá chegamos, o ambiente era pesado, e eu pensei imediatemente que alguma coisa ia acontecer e comigo, porque se tivesse sido com os primitos que me tinham acompanhado ao cinema, eles teriam sido recebidos à “chapada”.


O Cinema Restauração, onde iamos às matinés


O interrogatório aos meus primos começou em seguida, e disso me apercebi por o ter escutado quando me dirigia para a cozinha. O meu primo Mateus, incentivado pelo meu tio a “contar a verdade”, ignorando a verdade pretendida, limitava-se a responder que nada tinha acontecido, pelo que foi premiado com uns quantos tabefes e uma ida directa para a cama, sem jantar. A Alice Maria, face ao mesmo convite, ainda se atreveu a sugerir que tudo não passava de “coisas da cabeça doente da Graciete”, mas lá teve direito aos tabefes da ordem. Faltava eu...
O interrogatório teve a presença da “acusadora” e o meu tio convidou-me de imediato a esclarecer “o escandâ-lo” que eu teria feito no cinema, com um rapazito com quem namorisquei. Os meus primos não confirmaram nada, como é óbvio, porque nenhum escândalo havia para confirmar, mas a minha prima insistia e o marido mantinha-se calado que nem um rato. Apesar da insistência do meu tio, nada havia para confirmar, a acusação não tinha pés nem cabeça, mas ainda assim apanhei uma valente descompostura e lá fui, também, para a cama sem jantar.
Tenho de confessar que senti uma enorme vontade de bater na minha prima, pela pura maldade do comportamento dela. Essa vontade, aliás, não era original, mas sempre me contive, mais por respeito aos meus tios.

Tanta maldade, no entanto, teve um forte efeito em mim. Acabei por ganhar uma depressão efiquei anémica, num ano, passei dos 63 para 50 Kg. Tive de tomar comprimidos para conseguir comer, pois perdera completamente o apetite de meter alimentos á boca.

terça-feira, setembro 19, 2006

Luanda, escravidão e namoro

Chegada a Luanda, encontrei uma realidade muito diferente do que esperava.
Em primeiro lugar, deixei completamente de ter poderes sobre mim própria. Passei a ser refém, quase escrava, dos meus tios. Só podia fazer e pensar consoante o que me ordenavam, era-me completamente vedado falar com qualquer pessoa sem a presença de algum deles, sair fora do portão estava fora de questão, não podia escrever ou receber correio da minha família sem que fosse primeiro inspeccionada por eles. Era horrível saber que violavam a minha correspondência.
O meu salário era de 3000$00 por mês, negociado por "eles" e pela minha prima, que trabalhava no mesmo despachante que eu. Desse dinheiro, tinha de dar 2.000$ em casa para pagar a minha estadia. Os restantes mil escudos eram para todas a minhas despesas: transportes, livros, uma ida ocasional ao cinema (e que, ainda assim, só acontecia se pagasse o bilhete aos meus primos mais novos para me acompanharem porque caso contrário não podia ir). Não podia, também, ter amigas. Amigos, então, nem falar nisso era bom!
Para lhes agradar e tentar vencer obstáculos, comecei a trabalhar muito, nas horas livres. Apesar de poder parecer que isso seria bom para a forma como me tratavam, nem tudo foram rosas (como já me estava a habituar a que sempre acontecesse). Pelo lado positivo, passei a ser para os meus tios aquilo que eles queriam que as filhas fossem (muito trabalhadora e aplicada em tudo). O pior foi que, para as minhas primas, passei a ser, persona non grata, porque as “limitações” do comportamento delas aos olhos dos pais tornaram-se mais evidentes. Apesar de tudo, uma coisa muito positiva resultou desta estratégia: tornei-me uma mulher que não tem qualquer medo ao trabalho, e ainda hoje assim sou!
Provando que podemos estar sempre pior do que o estamos, a estratégia também se virou contra mim. O meu empenho no trabalho foi aproveitado no pior sentido, e virei “escrava de serviço”. Para além do trabalho no escritório do despachante e de estudar, aos sábados passei a ter um quarto amontoado de roupa para passar a ferro, o que me ocupava o dia inteiro e, por vezes, nem todo o sábado chegava. Se alguma das coisas que fazia não ficava perfeita, era reunido o conselho de família, de preferência à mesa, antes de servida a refeição, para me ralhar e me dizer que eu não estava na aldeia, nem no campo, e que, dados os elevados padrões da família (!) tinha de ser perfeita. Este ritual de humilhação, perante todos, passou a ser coisa habitual.


A Praia Azul


Antes de partir para Luanda, tinha um namorado a cumprir serviço militar, colocado, precisamente, em Luanda. Contra a minha vontade, as minhas irmãs informaram-no da minha nova morada, o que teve como consequência que ele me tivesse procurado, e tivesse acabado por me encontrar na casa dos meus tios. Era um pouco louco por mim, embora eu não nutrisse o mesmo sentimento por ele. Depois de me ter encontrado, quis reatar o namoro, desta vez com Luanda como cenário. Os meus tios, como seria de esperar, não consentiram, porque achavam que ele deveria pedir autorização, coisa que ele, e bem, não aceitou. Ainda que por portas travessas, não fiquei desiludida com isso, porque ele não era o homem dos meus sonhos. Ainda por cima eu achava que os meus tios não tinham qualquer direito de o obrigarem a obter o consentimento deles, pois nem o meu pai o tinha feito, no passado.
A ausência de pedido oficial de namoro levou a uma pequena querela entre a minha família e o candidato a namorado. Preferi alhear-me um pouco dessa situação, porque também não me interessava muito dar a conhecer ao rapaz o que se passava, pois eu sabia que ele não era o homem com quem queria casar. Apesar de tudo, na situação em que me encontrava, um amigo, um cúmplice até, era capaz de me fazer jeito.
No entanto, num espaço de tempo relativamente curto, a situação mudou, e foram até os meus tios quem arranjou maneira de me obrigar a aceitar o rapaz de bom grado e cara sorridente. De repente o candidato a namorado passou a ter um “potencial” mais interessante aos olhos dos meus tios, porque se aperceberam de que o podiam usar para proveito próprio. Começaram por lhe pedir que trouxesse vinho da messe dos oficiais, uma vez que em Angola não havia vinho, tinha de ir da metrópole, o que o tornava bastante caro. Como na messe dos oficiais vinho não faltava, o “namorado”, para poder estar comigo, lá aceitava as “encomendas”. Eu, pelo meu lado, ficava furiosa com a situação, porque me sentia “vendida” por uns garrafões de vinho.
Lá fui “obrigada” a namorar o rapaz, pelo benefício que daí resultava para os meus tios, em consequência das coisas que eles podiam obter ou dos “serviços” que passou a fazer em casa dos meus tios. Sim, porque não se satisfeitos com as encomendas da messe dos oficiais, passaram a aproveitá-lo noutros trabalhos de conveniência, sempre que o infeliz não estava de serviço, como pintar a casa, polir mobílias ou outras coisas do género.
O namoro em Braga era uma coisa de brincadeira, pois eu não gostava do rapaz para me casar com ele, ou assumir um namoro a sério. Em Luanda, no entanto, lá me foi imposta a obrigação de dar um ar mais sério à coisa, dado o natural lucro do namoro para o resto da família. Ainda detestei mais isso, pois o rapaz fazia de criado deles, sem qualquer rebuço ou hesitação por parte dos usufrutuários dos bens e serviços. Assim, ao domingo à tarde, quando não íamos ao cinema (tendo o namorado que pagar os bilhetes da minha prima mais nova e do meu primo), lá ficávamos a “namorar” em casa, sentados um de frente para o outro no sofá da sala de estar, o que me era muito desagradável, por várias razões. Primeira e mais importante razão -eu não queria namorar! Depois, na casa dos meus pais, nunca se tinha a obrigação de seguir este ritual de namoro “supervisionado”. Ora eu não suportava estar ali de frente com um rapaz, sempre com alguém por perto, como se fosse pecado estar sentada na sala, sozinha, com um rapaz. Sempre pensei que ninguém faz aquilo que não quer fazer e, se o quiser, não há barreira nem supervisão que impeçam que o que tiver de acontecer, aconteça.


Na Praia Azul


Como disse já, fazia-me jeito um amigo, não um namorado. Por isso, procurei fazer-me aliada dele. Precisava de alguém em quem pudesse confiar, alguém que me ajudasse, até, a libertar-me da censura prévia à correspondência com a minha família na metrópole. Combinei com ele que passaria a ser enviada essa correspondência para o quartel, para depois me ser entregue por ele. Como já estava a ficar habituada, no entanto, o tiro saiu-me pela culatra, novamente. Sempre fui um espírito livre, nunca gostei de amarras, queria um amigo e não um namorado, e comecei a cansar-me daquele namoro de conveniência. Decidi, por isso, acabar com o namoro. Ele não aceitou bem o fim do namoro e fez chantagem comigo, ameaçando-me de contar tudo aos meus tios, pelo que fiquei um pouco refém dessa chantagem. A verdade é que eu não sou pessoa para me deixar levar por chantagens e, perdida por cinco, perdida por dez, o namoro acabou de vez. O namorado, provando a nobreza de carácter a que me habituei em África, contou a um primo meu a combinação que eu tinha com ele para escrever e receber correspondência da família. A revelação deu grande confusão, mas fiquei livre da chantagem e do parvo do namorado.

Vista de hoje, a minha vida familiar em África foi um terror. Mesmo assim, não quero mal algum aos meuss tios e primos porque, na altura, eu queria e tinha de sair daqui, porque sentia que este não era o meu mundo, e eles acabaram por me ajudar a concretizar esse desejo de sair de casa dos meus pais e a possibilitar a concretização do meu sonho: estudar e trabalhar. Como isso só podia acontecer longe dos meus pais, se não tivesse ido para Luanda nunca o poderia ter realizado.

Em compensação, achei Luanda magnífica! Adorei aquela terra, ó se adorei! Quantas saudades no meu coração por aquelas lindas praias de água quente, onde o vento é uma dádiva aquando estamos na praia.
Que saudades de Luanda e do meu cantinho na Praia Azul !...


Um cantinho favorito, na Praia Azul

quarta-feira, maio 10, 2006

Como um passarinho preso na gaiola

Cheguei a Luanda num domingo à noite, por volta das 23 horas. Desembarcámos no porto de Luanda e depois de recebermos a bagagem dirigimo-nos para casa dos meus tios. As minhas primas tinham uma mesa com muitas coisas para comermos,mas eu estava perturbada pela emoção e não consegui comer nada. Nessa altura senti-me sozinha e abandonada. Quando nos recolhemos para dormir, seriam umas 4 da manhã.

O nosso bairro


Levantei-me bastante tarde, penso que por volta das 11 da manhã. Tinham-me deixado dormir, acordei por mim própria. Tudo parecia estranho, muito estranho. A casa dos meus tios ficava na Av. marginal, no bairro da Praia do Bispo, de frente para a Baía de Luanda.

Ao jantar desse primeiro dia, fiquei a saber que eu iria trabalhar no mesmo escritório onde trabalhava uma das minhas primas, que tinha acertado tudo com o patrão. Ao que parece, havia uma espécie de protecção para as pessoas que chegavam da metrópole e quem quisesse trabalhar era logo colocado, não havia falta de emprego em Luanda nessa altura. Foi um pouco violento para mim, pois não cheguei a ambientar-me a nada, foi chegar e começar a trabalhar. Eu não estava preparada, foi errado terem me colocado logo a trabalhar, sem ver nada, pois cheguei era noite alta,não vi nada daquela linda cidade. No dia seguinte, a não ser lavar umas roupas minhas, só comi e dormi, nem um pé tirei fora de casa. Quando saí foi ao terceiro dia, levada no carro da minha prima em direção ao meu posto de trabalho. Confesso que fiquei bastante assustada. Era tudo tão diferente, tão belo, mas tão assustador. Percebi que, desse eu um passo em falso, e poderia nunca mais voltaria a ver os meus pais e irmãos. Gostei de ver as pessoas de côr diferente da minha, sentia vontade de me aproximar delas, mas logo fui repreendida, porque era perigoso. Era uma rapariga inocente, não via nada de mal.

Os dias lá começavam mais cedo e acabavam também mais cedo. Às 4 horas da manhã amanhecia e às 18 horas começava a anoitecer. Os serviços começavam a laborar às 8 da manhã.

Não é fácil descrever o que senti quando vi a baixa de Luanda. Era uma cidade linda e moderna, com prédios altíssimos. Um deles, com 22 andares, tinha no cimo um anúncio ao Banco Comercial de Angola. O prédio para onde fui trabalhar, e onde funcionava também a Universidade, tinha 23 andares e, ao cimo, o anúncio ao Hotel João XXI, que ainda nem sequer tinha sido inaugurado. Ficava em frente do porto de Luanda (no largo Diogo Cão).


A marginal e lá no fundo o prédio alto era onde eu trabalhava


A empresa em que eu comecei a trabalhar era de despachante. Tinha 25 empregados, dos quais apenas 5 europeus: os dois patrões, eu, a minha prima e um gerente. A relação entre todos era muito boa, todos eram afáveis e educados comigo, com a excepção do gerente, o senhor Teixeira, que era um homem rude e grosseiro. Todos me tratavam muito bem, até o Simões, o estafeta do escritório, bom rapaz, muito atencioso, sempre pronto para nos ir buscar aqueles maravilhosos gelados na hora do lanche. Apreciava, em particular, os gelados de manga e de maracujá, macios, deliciosos (aqui nem aprecio gelados!). Recordo ainda quando alternávamos o lanche e pediamos para nos trazer pregos no pão, feitos de bifes pequeninos, que não se viam fora do pão, mas tão deliciosos e tenros, acompanhados de uma coca cola gelada! Quantas vezes já tentei fazêr aqui esses pregos, mas é pura ilusão, não consigo, de todo.

E eis que eu, uma rapariguinha vinda da província, que já tinha saído da escola há 9 anos, sem outros hábitos de leitura e de escrita que não as cartas de e para os namorados, a famosa Crónica Feminina e um romance ou outro, fui desempenhar a tarefa de copista. Não minto se vos disser que me custou muito adaptar-me à minha nova vida. Foi bastante violento para mim, em todos os aspectos, pois nem mentalmente fui preparada para essa função, foi chegar e começar. Eu, uma rapariga habituada à liberdade do campo, habituada a dormir a sesta, é assim a vida na aldeia, sem horas para nada na casa dos meus pais, passei a regime rigoroso: levantar às 7,15, almoçar às 12 horas, lanchar às 15, jantar às 18,30, ir para a cama às 21 horas, e sem terem preparação. Foi só vais, e mais nada!


O edificio da Alfandega Marítima, eu trabalhava do outro lado deste largo


Não tinha por hábito tomar café, nem pela manhã nem depois do almoço. Na casa dos meus pais ninguém tomava café, era só leite e cevada. Não será difícil, por isso, imaginar que muitas vezes adormecia sentada na secretária devido ao hábito que tinha desde sempre (dormir a sesta),e depois do almoço era fatal. Era um sono incontrolável, nem lavar a cara o atenuava. Tomar café tinha medo, pois nunca o tinha feito. Que saudades senti, Deus meu, da liberdade que até então tinha tido, das minhas cantorias, das minhas correrias campos fora. Quantas vezes chorei, sentada na casa de banho, cheia de sono, com a cara encharcada em água, contra a prisão em que me encontrava. Os tios sabiam, que eu era uma menina ingénua,sem qualquer experiência, nunca tiveram uma conversa comigo, no sentido de me preparar. Sentia-me como um pássaro dentro de uma gaiola. Mas o meu lema é desistir nunca e, sózinha, sem ajuda, tentei arranjar forma de me adaptar. Claro que foi muito duro, posso dizer-vos que achei mesmos aterrador, psicologicamente, para mim.

segunda-feira, março 20, 2006

A magnífica viagem e o despertar para a crua realidade

No dia 5 de Julho, parti então rumo a Luanda.
Foi uma viagem fantástica, como nunca tinha feito, até então. Passados todos estes anos, ainda continuo a dizer que foi a viagem mais maravilhosa da minha vida. Embarcámos por volta das 11 horas, não posso precisar que dia de semana era. Entrámos no navio e fizeram-se, a bordo, as despedidas dos familiares que lá se deslocaram com esse propósito. Éramos 7 viajantes, entre tios e primos.


À partida de Lisboa...


Assisti a todo o processo de partida do navio, não quis falhar nada. Aquele toque típico que os navios dão quando largam foi uma coisa marcante, na minha cabeça. Foi como se o navio estivesse a dizer aos que ficaram no cais, "eu vou levá-los".
A sensação de passar por baixo da ponte, à altura, Salazar e depois a saída para o mar, tudo isso foi excitante para mim. Apreciei cada segundo, cada metro de avanço do navio, rumo a Angola.
Algum tempo depois da partida, os meus tios disseram que era altura de se ir para dentro. Lá fomos. Aproveitei para visitar então todos os cantos do navio acessíveis aos passageiros: a primeira classe, que luxo(!), com as paredes todas forradas a veludo, o chão com alcatifa vermelha, aposentos mais pareciam de reis e rainhas; a turística "A", onde eu viajava e a turística "B", que era a classe mais económica. A partir do primeiro dia de viagem, o acesso estaria limitado às duas classes turísticas.

A vida a bordo era magnífica, eu pelo menos assim a vi, à altura. Tinhamos 2 camarotes, cada um com 3 bliches. Como éramos 7, colocaram mais um sofá num dos camarotes, para podermos ficar juntos. O meu tio inscreveu-nos a todos para fazermos as refeições no primeiro horário, dos 3 existentes. Recordo a comida a bordo como sendo deliciosa, com um cheiro fantástico. O pão era sempre quente e saboroso.
os nove dias que a viagem demorou, eram vividos da seguinte forma:

Pela manhã tomávamos o pequeno-almoço ás 7,30. Ao fim íamos mais um pouco até ao nosso camarote para dar tempo que todas as pessoas se alimentassem. Depois por volta das 9,30 vínhamos para cima, ora passeávamos pelo convés, ou iamos jogar uma partida de cartas para a sala de fumo (assim era chamada). Depois ás 11,30 íamos almoçar, no fim do almoço dormiamos uma sesta - os meus tios assim obrigavam - e por volta das 15 horas voltávamos a subir. Depois dividíamos o tempo ora em banhos na piscina, banhos de sol, e sempre os fantásticos passeios no convés, a olhar o mar alto vi golfinhos no alto mar . Ao fim da tarde admirar o pôr do sol sobre o oceano é algo indescritível! Eu adorava estar debruçada na proa do navio e ver a frente do barco a cortar a água.
Ás 15,30 íamos lanchar e depois voltava a diversão: jogos, passeios, piscina. Às 18 horas era o jantar. Depois o serão era passado a ver cinema, ou em bailes, ou ainda a jogar “Loto”, ou às cartas.

Ao segundo dia de viagem, fizemos o treino dos coletes salva-vidas. Não achei grande piada e incentivada por uma prima desobedeci ás ordens dadas pela tripulação. Fomos repreendidas. Eu era nova naquelas andanças, mas ela não. O comissário acabou por dizer, num tom inconfundível de reprovação: "vou escrever no livro que duas jovens desobedeceram aos treinos de salvamento e que se alguma coisa acontecer durante a viagem vocês serão responsáveis pela vossa segurança". Exigiu, depois, que voltássemos para o camarote. Fiquei apavorada mas nada podia fazer, pois era a minha prima quem estava no comando da desobediência e rebeldia, e eu não sabia onde estavam os meus primos e tios, para poder "escapar". Ao deslocarmo-nos para o camarote as portas do navio foram-se fechando e as lampadas apagadas, como parte do exercício, o que aumentou o estado de ansiedade em que me encontrava, eu estava mesmo apavorada.

Ao atravessarmos o Equador o clima ficou horrível, com uma humidade insuportável.
Os veteranos em viagens de navio praxaram os iniciados com o "Baptismo de bordo".
O meu tio escondeu-me no camarote para me proteger das “sevícias “ a que eram sujeitos os iniciados. Lamentei, mas não assisti â praxe. Sei apenas que consistia em colocarem uma capa vermelha e verde nos iniciados e depois dizerem umas palavras enquanto outros deitavam quantas mistelas podiam na cabeça deles, desde farinha a ovos. No fim atiravam com os iniciados para a piscina, perante as palmas e gargalhada geral.

A primeira noção de que, finalmente, estava fora da proteção dos meus pais e irmãos surgiu aquando da visita feita no primeiro ponto de paragem do percurso rumo a Angola: Foi no Funchal. Só tinhamos uma manhã para estar atracados e para uma visita relâmpago. Aproveitei para ir a uma farmácia, comprar uma pinça para arranjar as sobrancelhas porque não tinha levado nenhuma, uma vez que em casa havia apenas uma para todas nós.
Primeira confusão. Acredito que, pelo menos aos olhos de alguns dos meus primos, seria vista, talvez, como provinciana. Não me tinha nessa conta, procurava vestir-me com elegância e seguindo a moda da altura, tinha boas maneiras (o que, graças a Deus, penso que hoje ainda conservo). Mas lá saimos, então do navio os 5, eramos todos jovens, e dirigimo-nos a uma farmácia. Comprámos o que queríamos e depois fomos dar um pequeno passeio, que achei muito bonito, um paraíso na terra o Funchal achei eu. O passeio foi divertido, mas eu senti qualquer coisa que nunca na vida tinha sentido, vindo de um dos meus primos: sarcasmo e desdém. Chegou mesmo ao ponto de me "humilhar" publicamente, com um tom arrogante e malcriado, o que me desagradou profundamente.


Chegada ao navio, recolhi-me ao camarote e fui escrever uma carta à minha mãe, contando-lhe o sucedido. Algo fez desconfiar a minha tia, que acabou por localizar a carta entre as minhas coisas, e passei de vítima a ré. Foi um mau bocado por que passei, porque me acusaram de estar a contar assuntos que só a eles diziam respeito, e que, apesar de contar o bom tratamento que me davam, também contava o vexame pelo qual os meus primos me tinham feito passar. A minha tia rasgou a carta na minha frente e mal fiquei sózinha no camarote, chorei amargamente a falta da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos, nunca tinha passado por uma situação semelhante. E começei a partir desse dia a saber, a ter a certeza, de que a vida não é cor de rosa, e que a hipocria e o cinísmo pareciam ir ser uma constante. Apercebi-me, também, que até aquela altura tinha estado protegida, mas que essa protecção tinha sido perdida quando escolhi sair da casa dos meus pais, para ir ao encontro da minha aventura. Estava sózinha e muito longe, e por muito alto que gritasse, os meus gritos nunca chegariam aos ouvidos dos meus protectores habituais...

A partir daí a minha tia passou a fornecer-me papel e caneta, sempre que eu queria escrever para casa, mas cedo me apercebi de que isso não passava de uma artimanha para ler o que eu contava à minha mãe e saber o que se passava na minha cabeça, eu não estava habituada a isso nos meus pais lá, apesar de viver-mos no campo, sempre se respeitou o espaço de cada um e ninguém nunca jamais abriu correspondencia de quem fosse, nem os meus pais faziam tal coisa,eu nunca usei ler uma carta da minha irmã por grande que fora a minha curiosidade, ela contava se queria e quase sempre contava, caso o não fizesse era para respeitar.


À chegada a Luanda...


Apesar deste episódio, a viagem prosseguiu, magnífica, tendo a chegada a Luanda ocorrido a 15 de Julho, cerca das 23 horas. Quando avistei os meus outros primos, à espera no cais, desatei a chorar. Chorei tanto, tanto! E enquanto o meu tio me procurou acalmar o choro, abraçando-me, a minha tia aproximou-se com um ralhete: "vê se te comportas, que estão ali as tuas primas!". Foi talvez o fim anunciado do ar romântico da aventura iniciada em casa dos meus pais. Fiquei convencida que essa aventura ia ser toalmente diferente do que esperara inicialmente, mais dura e até cruel e fiquei com a sensação que me tinha metido em algo que podia vir a lamentar... mas se alguma coisa não sou, hoje ainda, nem era à altura, é de voltar atrás ou de desistir dos meus sonhos!

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

África e o fascínio da liberdade


Depois do casamento da minha irmã, senti-me muito sozinha. Comecei a ter muitas responsabilidades, para as quais não estava preparada.
Comecei por ter de representar a minha mãe, na ausência dela, o que não me agradou, muito porque isso representou ficar sem um pouco da minha liberdade. Passei a ser, também, a responsavel pela casa, na ausência dos meus pais. Fui, assim, obrigada a tornar-me dona de casa à força.

Até esta altura sempre tinha sido "a segunda", uma espécie de "patinho feio" da casa. O meu pai via-me como alguém que não se adaptava à vida na quinta, o que levava a que nunca fosse chamada para nada. Isso dava-me uma certa satisfação, pois detestava aquela vida. Com o casamento da minha irmã, lá tive eu de assumir, forçada, o lugar dela. A partir dessa altura passei a sentir-me a rapariga mais infeliz do mundo. Achava que o mundo estava contra mim, até porque não tinha jeito nenhum para as novas "funções" de que tinha sido incumbida.
Foi um desastre total. Os meus irmãos não me respeitavam. Eu não tinha qualquer inclinação para ser a "patroínha", logo não cumpria em termos as ordens que me eram dadas. Comecei por sofrer todo o tipo de represálias dadas pelo meu pai, até físicas. Na opinião dele era uma maneira de me tornar mulher responsável e preparada para a vida. Foi um mau bocado, sofri bastante, bastante mesmo.

A minha liberdade surgiu porém com a vinda de uns tios meus, de África. Esses tios vieram de Luanda, visitar a familia, coisa que faziam mais ou menos de 3 em 3 anos. Pensei imediatamente que podiam ser a minha salvação, quando ouvi falar na chegada deles. Podia ter chegado a minha hora, desde que conseguisse convencer o meu tio a levar-me com ele, quando voltasse para África. No dia em que chegaram a casa dos meus pais, eu senti-me estranha. Passei de mal humorada a bem disposta e muito atenciosa com todos. Eu senti isso e penso que a minha mãe também sentiu. O meu tio era o irmão mais velho da minha mãe. Eles ficaram lá em casa a passar uns dias. Tratei de pensar numa estratégia para convencer o meu tio a pedir ao meu pai para me deixar ir com eles para Luanda. Para meu espanto, o meu tio e restante familia ficaram felizes com o meu pedido e o meu tio foi pedir ao meu pai. Ora o meu pai, com o seu ar de desinteressado, disse logo que sim, que não sabia o que fazer comigo, pois eu não tinha jeito algum para o tipo de vida que levava.

Desde aí até à altura de embarcar foi um tempo super feliz. Tive de tratar de muitos documentos, apanhar um monte de vacinas, arranjar roupa para o clima de África. Tudo que me pudessem dizer de mal da decisão de ir, nem queria ouvir, pois queria sair dali e quanto mais rápido melhor, não fosse o meu pai arrepender-se e voltar atrás na decisão de me deixar partir. Havia também o reverso da medalha: tinha pena de deixar a minha mãe e os meus irmãos mais novos. O mais novo tinha apenas 18 meses!

Chegou o dia de os meus pais me levarem a Cascais, á casa dos meus tios, para tratar dos documentos em falta e para eu tomar as vacinas que faltavam. Foi necessário também ir à secretaria do Ultramar para poder embarcar na companhia dos meus tios, que eram funcionários do estado e podiam levar-me e sem ter de pagar a viagem, que seria feita de barco.
Saí de Braga no dia 28 de Junho, um domingo, manhã cedo. Fui todo o caminho a cantarolar e rir. A certa altura, a minha mãe segredou-me: "Vais toda contente não vês o teu pai de lágrima no olho?!" Eu nem olhei para a cara da minha mãe e não ousei olhar para nenhuma das outras pessoas que iam no carro. Pelos vistos iam todos a chorar. Eu era a única que estava feliz.

Chegamos a Lisboa por volta das 10 horas. Fomos à missa, e de seguida para casa dos meus tios. Aí chegados, descarregamos as minhas coisas, fomos recebidos por toda a familia e fomos almoçar. Depois do almoço pediram para eu sair com as minhas primas, para os meus pais não se terem de despedir de mim. Nessa altura havia guerra em África, os nossos soldados tinham medo de ir para lá, contavam coisas horríveis, mas eu queria ir e não estava preocupada com isso. Saí então com as minhas primas, quando cheguei, tive um certo aperto no coração ao ver que a minha mãe já não estava uma lágrima de dor rolou no meu rosto.

No dia seguinte recebi um telefonema do meu pai, que eu não quis atender. Nesse telefonema, o meu pai disse ao meu tio que me queria ir buscar de volta, que não queria ficar sem mim, estava a chorar dizia que eu era a lembrança viva da mãe dele,que me deixaria cumprir o meu sonho de estudar e seguir a vida com que sempre tinha sonhado. Era tarde demais para isso,tinha tido tantos anos para me agradar e não o fez e apenas em 12 horas tinha mudado! Não...eu segui o meu rumo via Luanda,ao encontro da realização dos meus sonhos, e no dia 5 de Julho embarquei no Paquete Infante D. Henrique.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

O casamento da minha irmã

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Chegados os meus 16 anos, comecei a detestar a vida que levava, e a não aguentar, mesmo. Deixei de achar graça a tudo dos meus 16 aos 18 anos foi um tempo muito aborrecido . Aquela não era, de todo a vida que queria para mim.
Os meus pais eram agricultores, pelo que claro que não nos era permitido sair de casa, excepto ao domingo. É verdade que as minhas amigas iam para lá fazer-me companhia e divertiamos-nos mas não igual a poder sair como elas faziam, mas elas podiam sair e eu não, essa é que era a verdade que me atormentava. Vestia de uma forma simples porque estava em casa e isso aos meus olhos era um problema,não estudava o que me deixava muito triste e aborrecida nunca mais chegava a maior idade para poder decidir e ir estudar, sair e poder vestir as minhas roupas bonitas, pois a mãe não deixava naquele tempo.
Que raio de vida aquela! Só sair aos domingos para dar um passeio e o resto do meu tempo todo passado em casa ou pelos campos, isso teve um ponto positivo, vi nascer quase todos os animais que existem por cá desde ratos cobras pássaros e tinha um jardim meu que era cuidado só por mim!Mas sair de casa é que nada! Qualquer saída que fizesse de casa tinha como limite o portão! Confesso que isso me tornou uma rapariga revoltada considerava-me uma prisioneira.
Eu já não era um mar de afectos. Era mesmo um pouco agressiva, mas esta situação persistente piorou ainda mais as coisas... Tentei que a minha tia, de quem eu gostava muito, me levasse para a casa dela, e ela acedia ao meu pedido, mas era preciso a aprovação do meu pai. Se a mãe deixasse que eu fosse com a tia para a casa dela, quando meu pai chegasse e eu não estivesse em casa ele assim que pudesse, partia à desfilada para me ir buscar. Nunca estive fora de casa mais de 15 dias.

Chegou o dia do casamento da minha irmã mais velha . Foi uma festa de arromba, com o almoço de casamento a ser feito lá em casa. Aquela azáfama da preparação do casamento foi algo que me fez vibrar de alegria, eram tantas pessoas a trabalhar lá! O almoço de casamento foi num celeiro, que foi todo enfeitado para a ocasião:com arcos feitos de hera e camélias vermelhas, no tecto cestas da vindima cheias de flores e trepadeiras. Todas as mesas tinham ramos de flores pregados nas toalhas, as paredes estavam todas forradas com lenços tradicionais do Minho e com apetrechos da agricultura.O Nosso celeiro ficou transformado num grande salão, tão lindo, tão fantástico, nunca tinha visto nada igual. Os convidados eram aí uns 150, o que para aquele tempo era um grande casamento. Ainda me lembro que o cortejo devia ter aí uns 70 automóveis. O pai contratou cozinheiros e serventes de mesa, e mandou matar animais de casa para o repasto. Foi tudo feito em casa, excepto o bolo de noiva.
A minha irmã ia uma noiva muito bonita bem como a minha mãe. Também as minhas irmãs pareciam princesas. Eu, como sempre, tinha de me vestir aos meus gostos, o meu vestido foi desenhado por mim, ficou muito bonito. Eu sentia-me muito bonita também ... mas o meu vestido era curto demais, o que mereceu a reprovação de algumas tias e da avó "Cazemira". Levei o cabelo preso, que a cabeleireira tinha enchido de laca e manchado de castanho e branco. Eu achei giro apesar de alguns familiares terem dito que era exagerado, mas eu sentia-me muito bonita.
A festa foi muito bonita, com tudo tudo feito em casa, digo tudo até as roupas vestido de noiva inclusivé,havia modista que ia para lá todas as semanas, mas nessa altura montou atlier lá na nossa casa, toda aquela azáfama era uma alegria. Durante 8 dias não se fez mais nada senão arranjar os enfeites para a festa. Foi tudo divinal, eu adorei.
O casamento foi numa capela na serra da Falperra, até nisso a minha irmã primou pelo bom gosto. Foi o casamento mais lindo que vi até hoje, e já fui a muitos. No final da festa, quando a minha irmã se foi embora, eu senti-me tão sozinha fiquei tão desolada chorei a noite toda ... Custou muito ver a minha irmã partir, primeiro para a lua de mel, depois do regresso da lua de mel,já não era igual ela estava diferente, parecia-me uma estranha chegou deu beijos e abraços a todos trouxe prendas, lanchou e foi embora para a casa dela,era uma vivenda pequenina muito arranjadinha e bonita, para mim foi um desalento sentir que a minha irmã não ia dormir mais connosco e dividir as nossas brincadeiras noturnas.E não iamos partilhar mais os nossos segredos, ela chegou das luas de mel e não contou nada do que se tinha passado com ela, era quase só o meu cunhado que falava por ela...