domingo, julho 27, 2008

Depois do Regresso!

Regressei em 14 de Agosto de 1975.
A minha vida teve um retrocesso, para o qual eu mentalmente não estava preparada.
Primeiro tive de voltar para a casa dos meus pais, depois de tanta luta para sair de lá. Depois como todos os que viemos daquela bendita terra, eu estava sem emprego e a minha cabeça já não pensava da mesma forma como antes da partida. Os sonhos tinham se desvanecido, por saber que cá não tinha hipóteses de me projectar . Como não consegui trazer o meu certificado de habilitações, foi um problema a minha matricula, para continuar a estudar . Quando estava a pensar começar outra vez a partir da 4ª classe, ouve uma escola que me aceitou e ao fim de eu correr durante um mês de escola em escola. Por fim consegui matricula-me, mesmo sem qualquer documento certificativo das minhas habilitações, na Escola Comercia de Alberto Sampaio.
Éramos os regressados de África pessoas mal aceites pelos Portugueses como nós, só que tínhamos tido a coragem de tentar melhorar de vida, dentro daquela terra que na altura era nossa, eu que não passava de uma vítima do 25 de Abril fui aplicada do vulgar nome de Retornada, com todas as consequências negativas que daí advinham. Sou uma pessoa com um íntimo alegre, depressa me enquadrei de novo e voltei a sorrir. Desta vez estava na minha terra de novo. Os projectos que antes de ir tinha, varreram-se da minha cabeça, ficou apenas a vontade de estudar.
Alguma coisa se partiu com a minha ida e vinda de África, sei que nunca mais fui a mesma pessoa, talvez tenha acordado, para um mundo que até então desconhecia.
Passei a perceber que existem pessoas boas, mas que também existem pessoas muito más.


Dois anos depois, voltei a trabalhar num escritório .
Então,eu trabalhava de dia e estudava á noite. Consegui fazer o meu 2º ano complementar , tendo sido dispensada de exames com a média final de 17 valores . O 2º ano complementar ,significava o mesmo que agora o 12º ano. Foi uma média boa que me dava hipóteses de ingressar numa carreira Universitária. Nada nesta vida me foi facilitado e esta foi mais uma delas. Quando eu muito feliz contei á minha Mãe que ia ingressar no curso de economia da Universidade do Porto. A minha mãe ficou muito feliz, aliás era ela a única que se congratulava com o meu sucesso escolar, ela sempre me considerou boa aluna, não sei porquê mas foi…Quando acordei para a negra realidade, estávamos no ano de 1982. Acontece que a minha mãe pensava que ir para o Porto era o mesmo que ir para a escola Secundária Alberto Sampaio . Escola onde estudei até completar o 2º complementar, e onde se encontra o meu cadastro escolar.
Quando acordamos, eu e a minha mãe para a realidade, de que não tinha possibilidades financeiras para ingressar na faculdade e continuar a estudar, ou seja para ir todos os dias para o Porto e vir. A minha Mãe disse-me: Até 10.000$00 eu dou-te mas era impossível, transportes, livros e todo o resto. Era impensável não tinha hipotses. Tinha de alguém me ajudar a pagar os meus estudos, ou não podia continuar. Claro que foi a segunda que venceu .Fiquei apenas com o meu 2º ano Complementar de Contabilidade e Administração, concluído em 1982.
De nada me serviu estudar, apenas para ter um pouco de cultura geral. A falta de dinheiro controla este mundo. Ainda hoje sinto revolta, por sentir que não tenho formação académica por falta de possibilidades. Concluo que o 25 de Abril me cortou as hipóteses de poder voar mais alto.

terça-feira, julho 03, 2007

Fomos tratados como cães vadios!...



A forma como tudo mudou em Luanda, depois do 25 de Abril, é difícil de descrever, aí que a descrição que se segue seja longa, muito longa.

Em Luanda, estudava numa escola nocturna. Eu e algumas das professoras éramos as únicas brancas, mas isso não impedia que, até então, fossemos todas amigas, como é normal numa sala de aulas. Cerca de um mês depois do 25 de Abril, tudo começou a mudar. Passei a ser marginalizada. Fui várias vezes agredida sem saber por quem, com pauladas e socos nas costas, sempre acompanhadas da frase maldita: "vai-te embora ó branca!". Agressões aleatórias a caminho da escola, por colegas negras, sem qualquer razão que a não a denunciada pelo "vai-te embora ó branca!" aconteceram várias vezes. O ambiente começou a ficar bastante hostil. Em Maio do ano seguinte e como faltava pouco para acabar o ano, que eu não queria perder, ia tentando aguentar a situação. Não contava nada em casa, para que não me impedissem de ir à escola.
Recordo o terror vivido numa das minhas deslocações para o liceu. No autocarro, do trabalho para a escola. O autocarro ia abarrotar de cheio,claro que só iam pessoas de cor, eu era a única branca. Pouco depois numa paragem ainda na baixa de Luanda, entrou a minha professora de ciências . O autocarro foi seguindo o seu percurso, e esvaziando. Quando não restavam mais do que uns 20 passageiros, velhos e novos, todos negros, mais eu e a professora, começaram as provocações, com gritos de "morte ao branco" e a fazerem obscenidades ao pé de nós. Permanecemos aterradas, como que paralisadas, eu e a professora, sem sequer ousarmos olhar uma para a outra, procurando não dar qualquer pretexto para que algum iniciasse o ataque. Eram inúmeras as histórias de autocarros desviados para os musseques, com violações e assassinatos, pelo que procurámos evitar qualquer comportamento, gesto ou olhar que pudesse servir de pretexto, mas foi tanto o terror porque que passamos nessa viagem, ainda hoje me lembro com pavor desses momentos, vi a violação e morte na minha frente… Acho que só não aconteceu porque, quer eu quer a professora, ficamos paralisadas e parecíamos umas múmias sem vida, sem reacção, invadidas peloo terror. O coração batia mas o cérebro estava paralisado. Foi a primeira vez na minha vida e única em que paralisei de terror tal foi o pavor infligido sobre nós, durante essa viagem. Quando chegamos à paragem perto da escola, nem nos conseguimos levantar, tal era o terror sentido. No entanto eles, que nos tinham identificado pelas batas, encarregaram-se de nos empurrar porta fora, como quem atira com sacos de batatas, e com umas estaladas e uns "anda branca, por hoje tens sorte!". Depois disto, nunca mais andei de autocarro.

Cheguei muitas vezes ao Liceu para deparar com cartazes a preanunciar explosões para as nove da noite. Sozinha, meio perdida no meio da confusão, voltava para trás, pé ante pé, com medo de ser notada pelos muitos grupos de miúdos, com um máximo de 10 anos, que andavam com varapaus na mão, a perseguir tudo o que mexia. Entravam pelas casas adentro, espancavam quem lá encontrava, saqueavam o que lhes apetecia e depois, mais tarde, iam os mais velhos acabar o serviço - o que consistia em matar quem persistia em lá ficar, mesmo depois dos saques. Num dos dias vi um destes grupos, enquanto me afastava da escola, e imaginei de imediato o meu fim ali mesmo, às mãos de uma dezena de crianças. Por milagre de Deus, eles não me viram, pois iam do outro lado da rua e era noite. Vi-os a entrar para uma das casas da rua e eu só ouvi os gritos dos infelizes que lá viviam. Afastei-me o mais depressa que pude, mas sem correr para não atrair as atenções.
Num outro dia assisti a dois ou três negros a tocarem à campainha de um prédio. Quando alguém veio à janela, dispararam as metralhadoras que traziam. Nem parei para olhar, afastei-me o mais depressa que pude. Soube, depois, que tinham abatido o proprietário de uma farmácia.

Andar na rua era, assim, um risco grande. Valiam-nos as muitas árvores existentes à noite e a pouco iluminação. Por outro lado, era pouco crível uma branca andar pela rua de noite, pelo que eu vestia um casaco preto e uma calças castanhas, tirava a bata da escola, que era branca, e assim era mais difícil reparem em mim.
Era frequente ver passar camiões da tropa, com panos pretos a tapar o interior. Dizia-se que levavam pessoas que tinham sido mortas.
Havia milhares de angolanos brancos que não conheciam Portugal, pois já há gerações que as famílias respectivas lá estavam. Dessas morreram famílias completas, para saciar a sede de vingança. Nunca cá ouvi referência alguma a esta situação.

Lembro-me doutra situação que aconteceu estava eu no escritório onde trabalhava, no Largo Diogo Cão, de frente para o porto marítimo. A certa altura apercebi-me de uma grande confusão no local de onde saiam os camiões e deixei-me estar a observar e tentar perceber o que era. Vi um homem branco a ser agredido à paulada, e ser arrastado. Até o ferro da paragem do autocarro foi arrancado para o agredirem. O homem conseguir meter-se por baixo de um carro estacionado. Entretanto vi parar um carro cheio de negros, conseguiram tirá-lo debaixo do carro onde se tinha escondido meteram-no dentro do carro onde viajavam, e arrancaram em alta velocidade. Os meus colegas que trabalhavam na estiva disseram que era o carro da sede do MPLA, para onde o levaram e onde acabou por ser assassinado. Coisas destas eram constantes. Soube depois que tudo tinha começado quando o infeliz ia a tentar sair do porto com o camião e um grupo de estivadores, de rádio ao ombro, não permitia a passagem do camião. O homem teria parado, e pedido para o deixarem passar. Ora, como podia um branco estar a dar ordens!? Só podia estar a pedir para morrer... e foi o que aconteceu.

Quantas vezes não vinha uma rajada de metralhadora do morro que existia atrás do palácio do governador? Muitos morreram assim, sem que nada os protegesse das balas perdidas. Não havia pão, não havia leite, não havia um mínimo para nos alimentarmos, em lugar algum. Tive alturas em que esperava que uma bala me matasse como quem espera a coisa mais normal da vida, nunca pensei ser possível sobreviver, tal era a a sanha dos ataque aos "brancos". Pensei que ia lá morrer, pois além de toda a violência contra nós, também se guerreavam entre eles e, frequentemente, ameaçavam rebentar os depósitos da gasolina e aí Luanda seria uma bola de fogo.

De todos as situações porque passei houve uma que me marcou e me traumatizou mais. Foi na altura em que o bairro onde morávamos "ficou no meio" de um ataque das forças do MPLA contra as forças da FNLA. Passámos a noite toda com crianças de dois e quatro anos debaixo das camas, com um tiroteio sem fim, lá fora. No nosso jardim estavam forças do MPLA, armados até aos dentes, com lança-roquétes (nome que ouvia chamar aquilo), granadas, tudo que era possível. Foram tantos os tiros que atingiram a nossa casa, mas por Deus nenhuma granada a atingiu. Estávamos todos petrificados de medo, quando nos bateram á porta aí a nossa respiração parou... Um primo meu, de rastos, foi à porta e abriu-a. Os do MPLA pediram uma garrafa de óleo pois as armas estavam a encravar e, de caminho, perguntaram se havia liamba. Face à resposta negativa do meu primo sobre a liamba, eles voltaram para as posições de combate.

A manhã chegou sem que ninguém tivesse conseguido pregar olho. Num acto de desespero o meu primo e pai de duas meninas, saiu de casa fora em direcção ao jardim nas traseiras da casa e foi fazer lume com carvão e aí arranjou os biberões para as filhas, que estavam cheias de fome. Nós continuamos nos esconderijos . Um grupo tropas Portuguesas, penso que da marinha, ia a seguir em alta velocidade pela marginal, quando começou um tiroteio muito forte. Tiveram de parar e correram, saltando os muros do nosso jardim, a deitaram-se no chão. Lembro-me que um, ao cair, bateu num vaso em pedra e acho que deve ter partido qualquer coisa pois, depois de ter abrandado o tiroteio, quando se foram embora, tiveram de levar esse camarada em braços. Os covardes esqueceram-se que estavam lá os compatriotas deles. Fugiram que nem ratos.

Num desse intervalos entre tiroteios, o meu tio disse: "Tudo para os carros!". A correr, quase uns por cima dos outros, fugimos do nosso bairro que estava a ser massacrado e fomos para a baixa de Luanda, para a casa de uns parentes. Nunca mais voltei à Praia do Bispo. Saí de casa com a roupa que tinha e o que me valeu foi uma mala de roupa que tinha mandado, já há algum tempo, por um soldado vizinho.



Antes da viagem de volta à metrópole, trocaram-me 5 mil angolares por 5 mil escudos, pois os angolares não valiam nada fora de Angola. Deixei uma ordem de transferência do meu outro dinheiro para aqui, transferência essa que, até hoje, nunca se completou. Passados uns dias pudemos, finalmente, ir para o aeroporto e arranjar lugar num avião. Foi preciso ter recorrido aos conhecimentos que tinha por trabalhar com as companhias de navegação para conseguirmos os bilhetes. Mas nessa altura eram milhares e milhares os que dormiam no chão, no aeroporto, crianças tudo, sem condições, sem alimentação, á espera de poder conseguir regressar! O que eu vi, meu Deus, quanto desespero.

Saímos de Luanda no dia 9 de Agosto de 1975, ás 22h00. Ao sobrevoar Luanda chorei convulsivamente, porque eu adorava aquela terra, tão linda, tão maravilhosa. Senti, nesse momento, que não voltaria lá mais...

Porquê sair assim? Porquê passar por todo este terror para milhares de pessoas que chamavam a Angola a sua terra? Foram muitos dias meses de um terror que não esquecerei, vivido na primeira pessoa.

Obs. Será difícil para todos os senhores do 25 de Abril de 1974, compreender que o tratamento dado aos expoliados das nossas excolónias foi indigno, e comprender que eles (esses senhores) não merecem qualquer respeito por parte dos que foram lá maltrados e aqui rejeitados e aplidados como (os retornados). Os ricos safam-se sempre quem sofre é sempre o povão...Não acreditam!...Quem era lá rico aqui também continuou a ser rico...Os diamantes estavam para eles á mão de semear. O povo sempre o Povo. É quem paga, as cabaladas .O que noveu o 25 de Abril e 1974 foi a sede do Poder.

terça-feira, abril 03, 2007

25 de Abril em Luanda


Tão linda e o que fizeram com ela!...


Passei por muito em Luanda, principalmente por viver num regime de vida muito diferente daquele em que tinha vivido até então. Além disso, a maneira de ser dos meus parentes em nada se assemelhava aos de cá, da "Metrópole". Tinham uma forma de estar na vida totalmente diferente e esse diferença afectou muito a minha vida e alterou bastante a minha estabilidade emocional, ainda hoje não superei totalmente. Deixei de ser uma rapariga sonhadora, frontal e espontânea, para dar lugar a uma mulher sossegada,perdi muita da minha inocência apercebi-me que o mundo era cruel. Na prática, passei a obedecer apenas e perdi a vontade própria.Eu apenas queria viver sem que me torturassem. A rapariga faladora calou-se, a rapariga sem segredos passou a tê-los, a rapariga que contava tudo da sua vida "morreu" para dar lugar a uma pessoa calada que só falava quando lhe perguntavam, era uma pessoa mogoada com a vida, pois compreendi que fui enganada e não tinha solução, por isso nada melhor que aceitar as ordens e as regras. Deixei de ser espontânea para ser apenas aquilo que os outros queriam que eu fosse, o sorriso dos meus lábios fugiu para não voltar. Passei a viver em função da preocupação de não errar e não desagradar.
Numa das manhãs de Luanda, cheguei ao escritório para um dia que prometia ser igual a tantos outros, pensava eu. Mas não foi… A certa altura apareceu esposa do Sr. Aragão, o meu patrão, com um rádio na mão. Seriam entre as 9 e 9,30 da manhã, em Luanda, por isso menos uma hora em Lisboa. Entrou como um vulcão e dirigiu-se ao gabinete do marido. Pelo que pudemos perceber, a rádio estava a noticiar que as comunicações com Portugal estavam cortadas, porque se tinha dado uma revolução. Confesso que nem percebi o que isso significava, na altura, eu não percebia o que significava a revolução, nunca ouvira falar e tal coisa a não ser nas minhas aulas de História. Terminado o dia de trabalho, quando voltei para casa, perguntei ao meu tio o que significava, e ele lá me contou.Logo me lembrei do meu irmão e fiquei super aflita pois ele era um tropa em Lisboa nessa altura, chorava por todos os cantos,o meu querido irmão numa guerra!... Segundo o meu tio os militares tinham-se revoltado e a Pide estava a resistir, pelo que podia haver mortes. Fiquei convencida que havia guerra em Lisboa, logo em Lisboa, onde se encontrava o meu adorado irmão, e ainda com as saudades que tinha dele, ainda me fazia sofrer mais, que dor eu tinha no meu peito. Logo nós que ficaramos felizes por ele não ter ido para a guerra, e foi a guerra ter com ele, era injusto, pelo que fiquei apavorada. Mal sabia eu que o pior estava para acontecer e reservado para nós ,os que vivíamos fora da Metrópole. Acho que ninguém que não tenha passado pelo que nos estava reservado, pode sequer imaginar o terror dos tempos que se seguiram á bendita revolução.
Nós que, até então, trabalhávamos, estudávamos, vivíamos uma vida simples, sem sobressaltos, e em paz, vimos tudo alterado num ápice. Um mês, nem tanto passado sobre o dia da revolução e o medo passou a estar sempre presente, para nós, os de pele branca. De todo o tempo que tinha passado em Luanda, desde a minha chegada, já me tinha sido possível ter uma ideia aproximada da vida naquela cidade. Não era muito diferente do que se passava na metrópole, embora me parecesse que se vivia melhor em Luanda. Claro que havia gente pobre, claro que havia gente que vivia mal, mas no geral parecia-me que as coisas lá eram bem melhores que por cá. Haverá quem diga que havia mais negros que brancos a viver mal, o que é verdade, porque em Angola os negros eram em muito maior número. Mas o país era rico e isso permitia que todos vivessem de modo mais ou menos aceitável. A verdade é que eu nunca tinha feito mal a negro algum, nem nunca tinha visto ninguém a fazer mal, também. Trabalhava rodeada de negros e estudava rodeada de negras, e pelo que podia ver, tinham mais ou menos o mesmo nível de vida que eu tinha, vestiam o que eu vestia, comiam o que eu comia, a única diferênça era a cor da pele.
Nunca ninguém cá contou o que passou a quem estava em Angola, depois o 25 de Abril, até à hora de conseguir lugar num avião, ou num barco, para voltar ao nosso querido Portugal. Eu, não tive grandes problemas em arranjar lugar num avião assim como para toda a minha família, eu trabalhava ligada com as companhias de navegação, quer marítima quer via aéria, foi com facilidade que compramos bilhetes, escolhemos a data de 9 de Agosto de 1975 para embarcar, e viemos num voo da Tap um 747 e saimos de lá ás 22 horas com destino a Lisboa . Mas o desfazer de projectos que tinha em mente para o futuro isso foi tudo gorado, para que sofri eu tanto. Mas chegada cá a verdade é que tinha a minha família desesperada á minha espera. Pior foi para aqueles que lá tinham nascido há gerações e gerações, que só por serem brancos tiveram de perder tudo e vir para um país que lhe era estranho e hostil. Foram de lá corridos sobre a pena de serem mortos se não o fizessem. Quando cá chegaram foram maltratados e intitulados de “retornados”, exploradores de pretos. Não houve forma mais cruel de tratar os espoliados, expulsos da sua terra natal por serem brancos, indesejados na metrópole por serem retornados . Quem era rico lá, conseguiu não deixar muita coisa e passar para a África do Sul ou Brasil e outros países vizinhos, mas quem vivia do seu salário, sem posses para fugir, suportou toda a malvadez de vingança que se lá passou . Os senhores do capital trouxeram para cá milhões em ouro e diamantes e cá continuaram com as suas fortunas, mas o povo, como sempre, foi o sofredor. Os senhores do 25 de Abril condenaram um povo que, por opção dos seus antepassados, vivia naquela terra. Não houve condescendência ou tolerância, apenas vingança e mais vingança contra todos os que tinham a pele branca.

Com a revolução em Lisboa, as tropas portuguesas em Angola, perderam a autoridade total assim lhes foi ordenado e eles assim cumpriam, era como nós não fossemos Portugueses nada faziam para nos proteger. Era como se a atitude anti-guerra, motivação originária da rebelião militar, tivesse assumido a preponderância sobre tudo o resto, deixando quem estava em Angola, à mercê de toda a espécie de malfeitorias. Não havia quem nos protegesse. Cada saída era um imponderável. Foram incontáveis os ataques, os roubos, as agressões, as violações, as mortes, sem que militares ou polícias fizessem alguma coisa. Assisti a coisas que davam um filme de terror, noites e noites de bombardeamentos sem fim…
Ao que se constava, as ordens que os militares e a polícia tinham, a mando de Rosas Coutinhos e similares, eram apenas para virem embora e o mais depressa possível, deixar tudo e regressar a Lisboa. Ainda lembro, como eu cheia de angústia via as nossas tropas a passar á nossa porta na marginal, em direção ao local de embarque.Era tão aterrador assistir a essa situação, pareciam uns covardes a fugir e a abandonar o povo o seu povo, que até então defenderam. Deveriam ficar até o último Português estar a salvo, deviam defender-nos protegendo-nos e tentar impedir que nada de mal nos acontecesse, tenho a certeza que seria assim num país civilizado, e que tivesse respeito e patriotismo, mas sabem lá o que é isso os homens do 25 de Abril, só ódio e revolta e raiva. Não tenho qualquer respeito pelos que ordenaram essa creldade.Não consegui trazer nada a não ser, trazer 5.000$00 ,trocado por 5.000 Angolares, tudo o resto, que tinha economizado para puder vir cá passar férias, teve de lá ficar,com uma ordem de transferência para um banco aqui na minha cidade, mas ainda hoje não apareceu.E já lá vão trinta e uns anos.
Irei em breve postar um texto com o terror que lá passamos e que eu sou uma testemunha ocular.


Dois dos Nossos Carrascos

domingo, novembro 26, 2006

Liberdade em falta, ciume e maldade em excesso

Em casa dos meus pais tinha uma liberdade que não valorizava. Era uma liberdade total, para andar campos fora, correr, saltar, subir a uma árvore, gritar, cantar, ver televisão até à hora que me apetecesse, ir à noitada de S. João, enfim, uma liberdade sempre presente.

Se em Luanda adorava o meu trabalho, foi também lá que, qual pássaro preso em gaiola, me apercebi, cruamente, da falta que me fazia a liberdade antiga. Que saudades tive eu, de tudo o que tinha a ver com a vida em casa dos meus pais. Até das constantes brigas com os meus irmãos tive saudades, mas acho que o que mais saudades me provocou era a autenticidade sempre presente, sem ponta de ironia, hipocrisia, falsidade ou cinismo, e a privacidade que tinhamos uns em relação aos outros. E quando o meu pai ou Mãe batia num eramos um por todos todos por um, sempre nos defendemos uns aos outros, nunca por nunca nos acusamos mutuamente, eramos genúinos e leais.

O ambiente no escritório onde trabalhava era muito bom. Os meus colegas eram carinhosos e recordo com especial saudade uma amiga, com quem gostaria de ter tido a possibilidade de trocar moradas, não fosse a precipitada saída de Luanda, nos quentes dias pós-revolução na metrópole. A Felismina, assim se chamava, era do Porto, onde morava na Rua dos Bragas, e estudava economia. Nunca mais soube dela desde que saí de Luanda, e as saudades dessa querida amiga são mais que muitas. Era maravilhosa comigo. Costumava levar-me um miminho depois do almoço – ora umas fatias de delicioso bolo, ora fruta, ora biscoitos muito bons, feitos pela avó, e de que eu gostava muito.
Das pessoas que comigo conviviam em Luanda, só a Felismina conhecia o meu sofrimento pela distância da minha família, e não foi difícil que ela própria se começasse a aperceber de que não tinha grande liberdade. Eram frequentes os convites que me fazia para que a acompanhasse nas idas ao cinema, mas que resultavam invariavelmente na minha impossibilidade de ir, dada a recusa dos meus tios em permitir tais saídas. A minha amiga Felismina era mesmo um raio de luz na penumbra das minhas relações pessoais em Luanda, e quem me dera poder voltar a encontrá-la, de novo, agora, passados tantos anos desde que a vi, pela última vez, na bela Luanda.


Eu e a minha prima Carlinha


Uma das minhas primas encarnava, sem dificuldade, o oposto da Felismina e deu-me a conhecer que as pessoas podem ter sentimentos que, até então, na minha simples ingenuidade, desconhecia. Se eu tinha completa vontade de trabalhar, ajudar os meus tios, estar sempre disponível para coisas que as minhas primas não estavam assim tão disponíveis, isso era sumariamente avaliado com um “ela é uma cínica, uma sabidona”. Sabia bem que enchia o meu tio de queixas sobre o que eu supostamente fazia, e ficou para mim claro que a motivação para tal comportamento era muito simples: o ciúme que tinha de mim, como mulher.
Nunca fiz nada na vida com segunda intenção, nem com vontade de ferir quem quer que fosse, pelo que o comportamento da minha prima me deixava profundamente sentida, e agravava as minhas saudades de casa, da minha família e da liberdade de que tinha gozado até à partida para Angola. Os sentimentos negativos acumulavam-se, a minha revolta era grande mas a verdade é que estava presa em Luanda, não tinha para onde fugir e nada mais me restava senão “aguentar” tanto quanto pudesse. Os meus tios também não ajudavam grande coisa na melhoria desta situação pois se, por um lado, “corriam” a minha prima, por outro lado não me poupavam a algumas reprimendas, apesar de eles próprios acabarem por reconhecer que eu nada fazia de mal, que o problema era a ciumeira da minha prima, e que o melhor era eu afastar-me dela o mais que pudesse, e evitar os confrontos a todo o custo.

O meu tio controlava razoavelmente bem a minha prima. A situação piorava, no entanto, quando ele tinha de se ausentar para o interior, onde ficava por períodos de tempo de duração variável. Nessas alturas aumentava a minha vulnerabilidade, porque a minha tia não conseguia ter “mão” nela, e as provocações surgiam, em catadupa, tudo servia de pretexto. Um dia desses, em que o meu tio estava para Cabinda, a confusão foi tal à mesa, ao almoço, nem posso precisar exactamente porquê, mas sei que mal consegui almoçar! Mas lembro que eram lulas (ainda hoje detesto lulas, por via disso). Quando cheguei ao trabalho ia transtornada, angustiada. O Sr. Teixeira, o gerente, foi ao pé de mim para me ordenar uns trabalhos, só que ao chegar ao pé de mim reparou que eu não estava bem e perguntou de imediato se me estava a sentir bem. Afastou-se e deu ordem a uma colega para ir falar comigo, para ver o que se passava. Eu estava apática e sem reacção, chamaram e Felismina para ver se conseguia que eu falasse. Ela optou por me trazer até ao jardim, mas eu ao entrar no elevador desmaiei, no que foi a primeira e única vez que tal me aconyeceu em toda a vida. Sentadas num banco, no jardim, ela tentou que eu falasse mas eu não conseguia balbuciar uma palavra, só acenava com a cabeça.
A Felismina sugeriu levar-me a passar a tarde na casa dela, talvez por se ter apercebido que eu estava num estado lamentável mas, por medo de represálias quando "elas" descobrissem, disse que não, que preferia ir para a casa dos meus tios. Contra a sua vontade, lá me levou.
Chegadas a casa dos meus tios, encontrámos a minha tia e a prima a Graciete. A Felismina era pessoa de poucas palavras, tinha muito nível e era muito educada. Quando elas se aproximaram do carro e perguntaram o que se passava, ela respondeu, com a verdade, e disse:"Não sei, só sei que desmaiou e não fala". Entretanto, eu já tinha entrado em casa e e ido para a cama, onde desatei num choro compulsivo.A minha tia e prima abeiraram-se de mim, disseram-me tantas e tantas, que eu entrei em estado de choque. Disseram até que eu teria manipulado a minha amiga, e achavam-me culpada por ela não ter sido simpática com elas. Sei que gritei a tarde toda, chamei por todos os meus familiares de Portugal - pai, mãe, irmãos e tios - numa gritaria em que pedi a cada uma para me ir buscar. Claro, "elas" ficaram aflitas e deram-me um valium 10, a ver se adormecia... de modo também a que a situação acabasse o mais rapidamente possível, não fosse o meu tio chegar.
Nem com o Valium adormeci. Continuei a gritar, era valente uma crise de nervos,e uma grande carência afectiva. Só ao terceiro Valium fraquejei, mas ainda sem dormir, o que não aconteceu sequer durante a noite. Quando o meu tio chegou, queixaram-se da minha amiga, que não teria sido simpática com elas, nem sequer lhes teria falado. Apesar de ser mentira, lá levei uma reprimenda, desta vez pela amiga, que era uma pessoa educada, e muito delicada, e que sempre gostou de mim e me tratou bem.
Na sequência deste episódio, fiquei dois dias de cama e passados 15 dias, apanhei uma pneumonia bastante grave, quase ia desta (daquela) para melhor.

Num outro dia, dia fui com os meus primos à matiné, no clube da praia do Bispo. Sem o sabermos, a minha prima foi à mesma matiné, com o marido (ela era casada, mas passava o dia em casa dos pais, com as filhas). Acabámos por nos encontrarmos todos à saída do cinema, com alguma surpresa nossa. O pedido de boleia que fizemos foi rejeitado com a rispidez habitual, pelo que voltámos a casa a pé. Quando lá chegamos, o ambiente era pesado, e eu pensei imediatemente que alguma coisa ia acontecer e comigo, porque se tivesse sido com os primitos que me tinham acompanhado ao cinema, eles teriam sido recebidos à “chapada”.


O Cinema Restauração, onde iamos às matinés


O interrogatório aos meus primos começou em seguida, e disso me apercebi por o ter escutado quando me dirigia para a cozinha. O meu primo Mateus, incentivado pelo meu tio a “contar a verdade”, ignorando a verdade pretendida, limitava-se a responder que nada tinha acontecido, pelo que foi premiado com uns quantos tabefes e uma ida directa para a cama, sem jantar. A Alice Maria, face ao mesmo convite, ainda se atreveu a sugerir que tudo não passava de “coisas da cabeça doente da Graciete”, mas lá teve direito aos tabefes da ordem. Faltava eu...
O interrogatório teve a presença da “acusadora” e o meu tio convidou-me de imediato a esclarecer “o escandâ-lo” que eu teria feito no cinema, com um rapazito com quem namorisquei. Os meus primos não confirmaram nada, como é óbvio, porque nenhum escândalo havia para confirmar, mas a minha prima insistia e o marido mantinha-se calado que nem um rato. Apesar da insistência do meu tio, nada havia para confirmar, a acusação não tinha pés nem cabeça, mas ainda assim apanhei uma valente descompostura e lá fui, também, para a cama sem jantar.
Tenho de confessar que senti uma enorme vontade de bater na minha prima, pela pura maldade do comportamento dela. Essa vontade, aliás, não era original, mas sempre me contive, mais por respeito aos meus tios.

Tanta maldade, no entanto, teve um forte efeito em mim. Acabei por ganhar uma depressão efiquei anémica, num ano, passei dos 63 para 50 Kg. Tive de tomar comprimidos para conseguir comer, pois perdera completamente o apetite de meter alimentos á boca.

terça-feira, setembro 19, 2006

Luanda, escravidão e namoro

Chegada a Luanda, encontrei uma realidade muito diferente do que esperava.
Em primeiro lugar, deixei completamente de ter poderes sobre mim própria. Passei a ser refém, quase escrava, dos meus tios. Só podia fazer e pensar consoante o que me ordenavam, era-me completamente vedado falar com qualquer pessoa sem a presença de algum deles, sair fora do portão estava fora de questão, não podia escrever ou receber correio da minha família sem que fosse primeiro inspeccionada por eles. Era horrível saber que violavam a minha correspondência.
O meu salário era de 3000$00 por mês, negociado por "eles" e pela minha prima, que trabalhava no mesmo despachante que eu. Desse dinheiro, tinha de dar 2.000$ em casa para pagar a minha estadia. Os restantes mil escudos eram para todas a minhas despesas: transportes, livros, uma ida ocasional ao cinema (e que, ainda assim, só acontecia se pagasse o bilhete aos meus primos mais novos para me acompanharem porque caso contrário não podia ir). Não podia, também, ter amigas. Amigos, então, nem falar nisso era bom!
Para lhes agradar e tentar vencer obstáculos, comecei a trabalhar muito, nas horas livres. Apesar de poder parecer que isso seria bom para a forma como me tratavam, nem tudo foram rosas (como já me estava a habituar a que sempre acontecesse). Pelo lado positivo, passei a ser para os meus tios aquilo que eles queriam que as filhas fossem (muito trabalhadora e aplicada em tudo). O pior foi que, para as minhas primas, passei a ser, persona non grata, porque as “limitações” do comportamento delas aos olhos dos pais tornaram-se mais evidentes. Apesar de tudo, uma coisa muito positiva resultou desta estratégia: tornei-me uma mulher que não tem qualquer medo ao trabalho, e ainda hoje assim sou!
Provando que podemos estar sempre pior do que o estamos, a estratégia também se virou contra mim. O meu empenho no trabalho foi aproveitado no pior sentido, e virei “escrava de serviço”. Para além do trabalho no escritório do despachante e de estudar, aos sábados passei a ter um quarto amontoado de roupa para passar a ferro, o que me ocupava o dia inteiro e, por vezes, nem todo o sábado chegava. Se alguma das coisas que fazia não ficava perfeita, era reunido o conselho de família, de preferência à mesa, antes de servida a refeição, para me ralhar e me dizer que eu não estava na aldeia, nem no campo, e que, dados os elevados padrões da família (!) tinha de ser perfeita. Este ritual de humilhação, perante todos, passou a ser coisa habitual.


A Praia Azul


Antes de partir para Luanda, tinha um namorado a cumprir serviço militar, colocado, precisamente, em Luanda. Contra a minha vontade, as minhas irmãs informaram-no da minha nova morada, o que teve como consequência que ele me tivesse procurado, e tivesse acabado por me encontrar na casa dos meus tios. Era um pouco louco por mim, embora eu não nutrisse o mesmo sentimento por ele. Depois de me ter encontrado, quis reatar o namoro, desta vez com Luanda como cenário. Os meus tios, como seria de esperar, não consentiram, porque achavam que ele deveria pedir autorização, coisa que ele, e bem, não aceitou. Ainda que por portas travessas, não fiquei desiludida com isso, porque ele não era o homem dos meus sonhos. Ainda por cima eu achava que os meus tios não tinham qualquer direito de o obrigarem a obter o consentimento deles, pois nem o meu pai o tinha feito, no passado.
A ausência de pedido oficial de namoro levou a uma pequena querela entre a minha família e o candidato a namorado. Preferi alhear-me um pouco dessa situação, porque também não me interessava muito dar a conhecer ao rapaz o que se passava, pois eu sabia que ele não era o homem com quem queria casar. Apesar de tudo, na situação em que me encontrava, um amigo, um cúmplice até, era capaz de me fazer jeito.
No entanto, num espaço de tempo relativamente curto, a situação mudou, e foram até os meus tios quem arranjou maneira de me obrigar a aceitar o rapaz de bom grado e cara sorridente. De repente o candidato a namorado passou a ter um “potencial” mais interessante aos olhos dos meus tios, porque se aperceberam de que o podiam usar para proveito próprio. Começaram por lhe pedir que trouxesse vinho da messe dos oficiais, uma vez que em Angola não havia vinho, tinha de ir da metrópole, o que o tornava bastante caro. Como na messe dos oficiais vinho não faltava, o “namorado”, para poder estar comigo, lá aceitava as “encomendas”. Eu, pelo meu lado, ficava furiosa com a situação, porque me sentia “vendida” por uns garrafões de vinho.
Lá fui “obrigada” a namorar o rapaz, pelo benefício que daí resultava para os meus tios, em consequência das coisas que eles podiam obter ou dos “serviços” que passou a fazer em casa dos meus tios. Sim, porque não se satisfeitos com as encomendas da messe dos oficiais, passaram a aproveitá-lo noutros trabalhos de conveniência, sempre que o infeliz não estava de serviço, como pintar a casa, polir mobílias ou outras coisas do género.
O namoro em Braga era uma coisa de brincadeira, pois eu não gostava do rapaz para me casar com ele, ou assumir um namoro a sério. Em Luanda, no entanto, lá me foi imposta a obrigação de dar um ar mais sério à coisa, dado o natural lucro do namoro para o resto da família. Ainda detestei mais isso, pois o rapaz fazia de criado deles, sem qualquer rebuço ou hesitação por parte dos usufrutuários dos bens e serviços. Assim, ao domingo à tarde, quando não íamos ao cinema (tendo o namorado que pagar os bilhetes da minha prima mais nova e do meu primo), lá ficávamos a “namorar” em casa, sentados um de frente para o outro no sofá da sala de estar, o que me era muito desagradável, por várias razões. Primeira e mais importante razão -eu não queria namorar! Depois, na casa dos meus pais, nunca se tinha a obrigação de seguir este ritual de namoro “supervisionado”. Ora eu não suportava estar ali de frente com um rapaz, sempre com alguém por perto, como se fosse pecado estar sentada na sala, sozinha, com um rapaz. Sempre pensei que ninguém faz aquilo que não quer fazer e, se o quiser, não há barreira nem supervisão que impeçam que o que tiver de acontecer, aconteça.


Na Praia Azul


Como disse já, fazia-me jeito um amigo, não um namorado. Por isso, procurei fazer-me aliada dele. Precisava de alguém em quem pudesse confiar, alguém que me ajudasse, até, a libertar-me da censura prévia à correspondência com a minha família na metrópole. Combinei com ele que passaria a ser enviada essa correspondência para o quartel, para depois me ser entregue por ele. Como já estava a ficar habituada, no entanto, o tiro saiu-me pela culatra, novamente. Sempre fui um espírito livre, nunca gostei de amarras, queria um amigo e não um namorado, e comecei a cansar-me daquele namoro de conveniência. Decidi, por isso, acabar com o namoro. Ele não aceitou bem o fim do namoro e fez chantagem comigo, ameaçando-me de contar tudo aos meus tios, pelo que fiquei um pouco refém dessa chantagem. A verdade é que eu não sou pessoa para me deixar levar por chantagens e, perdida por cinco, perdida por dez, o namoro acabou de vez. O namorado, provando a nobreza de carácter a que me habituei em África, contou a um primo meu a combinação que eu tinha com ele para escrever e receber correspondência da família. A revelação deu grande confusão, mas fiquei livre da chantagem e do parvo do namorado.

Vista de hoje, a minha vida familiar em África foi um terror. Mesmo assim, não quero mal algum aos meuss tios e primos porque, na altura, eu queria e tinha de sair daqui, porque sentia que este não era o meu mundo, e eles acabaram por me ajudar a concretizar esse desejo de sair de casa dos meus pais e a possibilitar a concretização do meu sonho: estudar e trabalhar. Como isso só podia acontecer longe dos meus pais, se não tivesse ido para Luanda nunca o poderia ter realizado.

Em compensação, achei Luanda magnífica! Adorei aquela terra, ó se adorei! Quantas saudades no meu coração por aquelas lindas praias de água quente, onde o vento é uma dádiva aquando estamos na praia.
Que saudades de Luanda e do meu cantinho na Praia Azul !...


Um cantinho favorito, na Praia Azul

quarta-feira, maio 10, 2006

Como um passarinho preso na gaiola

Cheguei a Luanda num domingo à noite, por volta das 23 horas. Desembarcámos no porto de Luanda e depois de recebermos a bagagem dirigimo-nos para casa dos meus tios. As minhas primas tinham uma mesa com muitas coisas para comermos,mas eu estava perturbada pela emoção e não consegui comer nada. Nessa altura senti-me sozinha e abandonada. Quando nos recolhemos para dormir, seriam umas 4 da manhã.

O nosso bairro


Levantei-me bastante tarde, penso que por volta das 11 da manhã. Tinham-me deixado dormir, acordei por mim própria. Tudo parecia estranho, muito estranho. A casa dos meus tios ficava na Av. marginal, no bairro da Praia do Bispo, de frente para a Baía de Luanda.

Ao jantar desse primeiro dia, fiquei a saber que eu iria trabalhar no mesmo escritório onde trabalhava uma das minhas primas, que tinha acertado tudo com o patrão. Ao que parece, havia uma espécie de protecção para as pessoas que chegavam da metrópole e quem quisesse trabalhar era logo colocado, não havia falta de emprego em Luanda nessa altura. Foi um pouco violento para mim, pois não cheguei a ambientar-me a nada, foi chegar e começar a trabalhar. Eu não estava preparada, foi errado terem me colocado logo a trabalhar, sem ver nada, pois cheguei era noite alta,não vi nada daquela linda cidade. No dia seguinte, a não ser lavar umas roupas minhas, só comi e dormi, nem um pé tirei fora de casa. Quando saí foi ao terceiro dia, levada no carro da minha prima em direção ao meu posto de trabalho. Confesso que fiquei bastante assustada. Era tudo tão diferente, tão belo, mas tão assustador. Percebi que, desse eu um passo em falso, e poderia nunca mais voltaria a ver os meus pais e irmãos. Gostei de ver as pessoas de côr diferente da minha, sentia vontade de me aproximar delas, mas logo fui repreendida, porque era perigoso. Era uma rapariga inocente, não via nada de mal.

Os dias lá começavam mais cedo e acabavam também mais cedo. Às 4 horas da manhã amanhecia e às 18 horas começava a anoitecer. Os serviços começavam a laborar às 8 da manhã.

Não é fácil descrever o que senti quando vi a baixa de Luanda. Era uma cidade linda e moderna, com prédios altíssimos. Um deles, com 22 andares, tinha no cimo um anúncio ao Banco Comercial de Angola. O prédio para onde fui trabalhar, e onde funcionava também a Universidade, tinha 23 andares e, ao cimo, o anúncio ao Hotel João XXI, que ainda nem sequer tinha sido inaugurado. Ficava em frente do porto de Luanda (no largo Diogo Cão).


A marginal e lá no fundo o prédio alto era onde eu trabalhava


A empresa em que eu comecei a trabalhar era de despachante. Tinha 25 empregados, dos quais apenas 5 europeus: os dois patrões, eu, a minha prima e um gerente. A relação entre todos era muito boa, todos eram afáveis e educados comigo, com a excepção do gerente, o senhor Teixeira, que era um homem rude e grosseiro. Todos me tratavam muito bem, até o Simões, o estafeta do escritório, bom rapaz, muito atencioso, sempre pronto para nos ir buscar aqueles maravilhosos gelados na hora do lanche. Apreciava, em particular, os gelados de manga e de maracujá, macios, deliciosos (aqui nem aprecio gelados!). Recordo ainda quando alternávamos o lanche e pediamos para nos trazer pregos no pão, feitos de bifes pequeninos, que não se viam fora do pão, mas tão deliciosos e tenros, acompanhados de uma coca cola gelada! Quantas vezes já tentei fazêr aqui esses pregos, mas é pura ilusão, não consigo, de todo.

E eis que eu, uma rapariguinha vinda da província, que já tinha saído da escola há 9 anos, sem outros hábitos de leitura e de escrita que não as cartas de e para os namorados, a famosa Crónica Feminina e um romance ou outro, fui desempenhar a tarefa de copista. Não minto se vos disser que me custou muito adaptar-me à minha nova vida. Foi bastante violento para mim, em todos os aspectos, pois nem mentalmente fui preparada para essa função, foi chegar e começar. Eu, uma rapariga habituada à liberdade do campo, habituada a dormir a sesta, é assim a vida na aldeia, sem horas para nada na casa dos meus pais, passei a regime rigoroso: levantar às 7,15, almoçar às 12 horas, lanchar às 15, jantar às 18,30, ir para a cama às 21 horas, e sem terem preparação. Foi só vais, e mais nada!


O edificio da Alfandega Marítima, eu trabalhava do outro lado deste largo


Não tinha por hábito tomar café, nem pela manhã nem depois do almoço. Na casa dos meus pais ninguém tomava café, era só leite e cevada. Não será difícil, por isso, imaginar que muitas vezes adormecia sentada na secretária devido ao hábito que tinha desde sempre (dormir a sesta),e depois do almoço era fatal. Era um sono incontrolável, nem lavar a cara o atenuava. Tomar café tinha medo, pois nunca o tinha feito. Que saudades senti, Deus meu, da liberdade que até então tinha tido, das minhas cantorias, das minhas correrias campos fora. Quantas vezes chorei, sentada na casa de banho, cheia de sono, com a cara encharcada em água, contra a prisão em que me encontrava. Os tios sabiam, que eu era uma menina ingénua,sem qualquer experiência, nunca tiveram uma conversa comigo, no sentido de me preparar. Sentia-me como um pássaro dentro de uma gaiola. Mas o meu lema é desistir nunca e, sózinha, sem ajuda, tentei arranjar forma de me adaptar. Claro que foi muito duro, posso dizer-vos que achei mesmos aterrador, psicologicamente, para mim.

segunda-feira, março 20, 2006

A magnífica viagem e o despertar para a crua realidade

No dia 5 de Julho, parti então rumo a Luanda.
Foi uma viagem fantástica, como nunca tinha feito, até então. Passados todos estes anos, ainda continuo a dizer que foi a viagem mais maravilhosa da minha vida. Embarcámos por volta das 11 horas, não posso precisar que dia de semana era. Entrámos no navio e fizeram-se, a bordo, as despedidas dos familiares que lá se deslocaram com esse propósito. Éramos 7 viajantes, entre tios e primos.


À partida de Lisboa...


Assisti a todo o processo de partida do navio, não quis falhar nada. Aquele toque típico que os navios dão quando largam foi uma coisa marcante, na minha cabeça. Foi como se o navio estivesse a dizer aos que ficaram no cais, "eu vou levá-los".
A sensação de passar por baixo da ponte, à altura, Salazar e depois a saída para o mar, tudo isso foi excitante para mim. Apreciei cada segundo, cada metro de avanço do navio, rumo a Angola.
Algum tempo depois da partida, os meus tios disseram que era altura de se ir para dentro. Lá fomos. Aproveitei para visitar então todos os cantos do navio acessíveis aos passageiros: a primeira classe, que luxo(!), com as paredes todas forradas a veludo, o chão com alcatifa vermelha, aposentos mais pareciam de reis e rainhas; a turística "A", onde eu viajava e a turística "B", que era a classe mais económica. A partir do primeiro dia de viagem, o acesso estaria limitado às duas classes turísticas.

A vida a bordo era magnífica, eu pelo menos assim a vi, à altura. Tinhamos 2 camarotes, cada um com 3 bliches. Como éramos 7, colocaram mais um sofá num dos camarotes, para podermos ficar juntos. O meu tio inscreveu-nos a todos para fazermos as refeições no primeiro horário, dos 3 existentes. Recordo a comida a bordo como sendo deliciosa, com um cheiro fantástico. O pão era sempre quente e saboroso.
os nove dias que a viagem demorou, eram vividos da seguinte forma:

Pela manhã tomávamos o pequeno-almoço ás 7,30. Ao fim íamos mais um pouco até ao nosso camarote para dar tempo que todas as pessoas se alimentassem. Depois por volta das 9,30 vínhamos para cima, ora passeávamos pelo convés, ou iamos jogar uma partida de cartas para a sala de fumo (assim era chamada). Depois ás 11,30 íamos almoçar, no fim do almoço dormiamos uma sesta - os meus tios assim obrigavam - e por volta das 15 horas voltávamos a subir. Depois dividíamos o tempo ora em banhos na piscina, banhos de sol, e sempre os fantásticos passeios no convés, a olhar o mar alto vi golfinhos no alto mar . Ao fim da tarde admirar o pôr do sol sobre o oceano é algo indescritível! Eu adorava estar debruçada na proa do navio e ver a frente do barco a cortar a água.
Ás 15,30 íamos lanchar e depois voltava a diversão: jogos, passeios, piscina. Às 18 horas era o jantar. Depois o serão era passado a ver cinema, ou em bailes, ou ainda a jogar “Loto”, ou às cartas.

Ao segundo dia de viagem, fizemos o treino dos coletes salva-vidas. Não achei grande piada e incentivada por uma prima desobedeci ás ordens dadas pela tripulação. Fomos repreendidas. Eu era nova naquelas andanças, mas ela não. O comissário acabou por dizer, num tom inconfundível de reprovação: "vou escrever no livro que duas jovens desobedeceram aos treinos de salvamento e que se alguma coisa acontecer durante a viagem vocês serão responsáveis pela vossa segurança". Exigiu, depois, que voltássemos para o camarote. Fiquei apavorada mas nada podia fazer, pois era a minha prima quem estava no comando da desobediência e rebeldia, e eu não sabia onde estavam os meus primos e tios, para poder "escapar". Ao deslocarmo-nos para o camarote as portas do navio foram-se fechando e as lampadas apagadas, como parte do exercício, o que aumentou o estado de ansiedade em que me encontrava, eu estava mesmo apavorada.

Ao atravessarmos o Equador o clima ficou horrível, com uma humidade insuportável.
Os veteranos em viagens de navio praxaram os iniciados com o "Baptismo de bordo".
O meu tio escondeu-me no camarote para me proteger das “sevícias “ a que eram sujeitos os iniciados. Lamentei, mas não assisti â praxe. Sei apenas que consistia em colocarem uma capa vermelha e verde nos iniciados e depois dizerem umas palavras enquanto outros deitavam quantas mistelas podiam na cabeça deles, desde farinha a ovos. No fim atiravam com os iniciados para a piscina, perante as palmas e gargalhada geral.

A primeira noção de que, finalmente, estava fora da proteção dos meus pais e irmãos surgiu aquando da visita feita no primeiro ponto de paragem do percurso rumo a Angola: Foi no Funchal. Só tinhamos uma manhã para estar atracados e para uma visita relâmpago. Aproveitei para ir a uma farmácia, comprar uma pinça para arranjar as sobrancelhas porque não tinha levado nenhuma, uma vez que em casa havia apenas uma para todas nós.
Primeira confusão. Acredito que, pelo menos aos olhos de alguns dos meus primos, seria vista, talvez, como provinciana. Não me tinha nessa conta, procurava vestir-me com elegância e seguindo a moda da altura, tinha boas maneiras (o que, graças a Deus, penso que hoje ainda conservo). Mas lá saimos, então do navio os 5, eramos todos jovens, e dirigimo-nos a uma farmácia. Comprámos o que queríamos e depois fomos dar um pequeno passeio, que achei muito bonito, um paraíso na terra o Funchal achei eu. O passeio foi divertido, mas eu senti qualquer coisa que nunca na vida tinha sentido, vindo de um dos meus primos: sarcasmo e desdém. Chegou mesmo ao ponto de me "humilhar" publicamente, com um tom arrogante e malcriado, o que me desagradou profundamente.


Chegada ao navio, recolhi-me ao camarote e fui escrever uma carta à minha mãe, contando-lhe o sucedido. Algo fez desconfiar a minha tia, que acabou por localizar a carta entre as minhas coisas, e passei de vítima a ré. Foi um mau bocado por que passei, porque me acusaram de estar a contar assuntos que só a eles diziam respeito, e que, apesar de contar o bom tratamento que me davam, também contava o vexame pelo qual os meus primos me tinham feito passar. A minha tia rasgou a carta na minha frente e mal fiquei sózinha no camarote, chorei amargamente a falta da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos, nunca tinha passado por uma situação semelhante. E começei a partir desse dia a saber, a ter a certeza, de que a vida não é cor de rosa, e que a hipocria e o cinísmo pareciam ir ser uma constante. Apercebi-me, também, que até aquela altura tinha estado protegida, mas que essa protecção tinha sido perdida quando escolhi sair da casa dos meus pais, para ir ao encontro da minha aventura. Estava sózinha e muito longe, e por muito alto que gritasse, os meus gritos nunca chegariam aos ouvidos dos meus protectores habituais...

A partir daí a minha tia passou a fornecer-me papel e caneta, sempre que eu queria escrever para casa, mas cedo me apercebi de que isso não passava de uma artimanha para ler o que eu contava à minha mãe e saber o que se passava na minha cabeça, eu não estava habituada a isso nos meus pais lá, apesar de viver-mos no campo, sempre se respeitou o espaço de cada um e ninguém nunca jamais abriu correspondencia de quem fosse, nem os meus pais faziam tal coisa,eu nunca usei ler uma carta da minha irmã por grande que fora a minha curiosidade, ela contava se queria e quase sempre contava, caso o não fizesse era para respeitar.


À chegada a Luanda...


Apesar deste episódio, a viagem prosseguiu, magnífica, tendo a chegada a Luanda ocorrido a 15 de Julho, cerca das 23 horas. Quando avistei os meus outros primos, à espera no cais, desatei a chorar. Chorei tanto, tanto! E enquanto o meu tio me procurou acalmar o choro, abraçando-me, a minha tia aproximou-se com um ralhete: "vê se te comportas, que estão ali as tuas primas!". Foi talvez o fim anunciado do ar romântico da aventura iniciada em casa dos meus pais. Fiquei convencida que essa aventura ia ser toalmente diferente do que esperara inicialmente, mais dura e até cruel e fiquei com a sensação que me tinha metido em algo que podia vir a lamentar... mas se alguma coisa não sou, hoje ainda, nem era à altura, é de voltar atrás ou de desistir dos meus sonhos!