terça-feira, setembro 19, 2006

Luanda, escravidão e namoro

Chegada a Luanda, encontrei uma realidade muito diferente do que esperava.
Em primeiro lugar, deixei completamente de ter poderes sobre mim própria. Passei a ser refém, quase escrava, dos meus tios. Só podia fazer e pensar consoante o que me ordenavam, era-me completamente vedado falar com qualquer pessoa sem a presença de algum deles, sair fora do portão estava fora de questão, não podia escrever ou receber correio da minha família sem que fosse primeiro inspeccionada por eles. Era horrível saber que violavam a minha correspondência.
O meu salário era de 3000$00 por mês, negociado por "eles" e pela minha prima, que trabalhava no mesmo despachante que eu. Desse dinheiro, tinha de dar 2.000$ em casa para pagar a minha estadia. Os restantes mil escudos eram para todas a minhas despesas: transportes, livros, uma ida ocasional ao cinema (e que, ainda assim, só acontecia se pagasse o bilhete aos meus primos mais novos para me acompanharem porque caso contrário não podia ir). Não podia, também, ter amigas. Amigos, então, nem falar nisso era bom!
Para lhes agradar e tentar vencer obstáculos, comecei a trabalhar muito, nas horas livres. Apesar de poder parecer que isso seria bom para a forma como me tratavam, nem tudo foram rosas (como já me estava a habituar a que sempre acontecesse). Pelo lado positivo, passei a ser para os meus tios aquilo que eles queriam que as filhas fossem (muito trabalhadora e aplicada em tudo). O pior foi que, para as minhas primas, passei a ser, persona non grata, porque as “limitações” do comportamento delas aos olhos dos pais tornaram-se mais evidentes. Apesar de tudo, uma coisa muito positiva resultou desta estratégia: tornei-me uma mulher que não tem qualquer medo ao trabalho, e ainda hoje assim sou!
Provando que podemos estar sempre pior do que o estamos, a estratégia também se virou contra mim. O meu empenho no trabalho foi aproveitado no pior sentido, e virei “escrava de serviço”. Para além do trabalho no escritório do despachante e de estudar, aos sábados passei a ter um quarto amontoado de roupa para passar a ferro, o que me ocupava o dia inteiro e, por vezes, nem todo o sábado chegava. Se alguma das coisas que fazia não ficava perfeita, era reunido o conselho de família, de preferência à mesa, antes de servida a refeição, para me ralhar e me dizer que eu não estava na aldeia, nem no campo, e que, dados os elevados padrões da família (!) tinha de ser perfeita. Este ritual de humilhação, perante todos, passou a ser coisa habitual.


A Praia Azul


Antes de partir para Luanda, tinha um namorado a cumprir serviço militar, colocado, precisamente, em Luanda. Contra a minha vontade, as minhas irmãs informaram-no da minha nova morada, o que teve como consequência que ele me tivesse procurado, e tivesse acabado por me encontrar na casa dos meus tios. Era um pouco louco por mim, embora eu não nutrisse o mesmo sentimento por ele. Depois de me ter encontrado, quis reatar o namoro, desta vez com Luanda como cenário. Os meus tios, como seria de esperar, não consentiram, porque achavam que ele deveria pedir autorização, coisa que ele, e bem, não aceitou. Ainda que por portas travessas, não fiquei desiludida com isso, porque ele não era o homem dos meus sonhos. Ainda por cima eu achava que os meus tios não tinham qualquer direito de o obrigarem a obter o consentimento deles, pois nem o meu pai o tinha feito, no passado.
A ausência de pedido oficial de namoro levou a uma pequena querela entre a minha família e o candidato a namorado. Preferi alhear-me um pouco dessa situação, porque também não me interessava muito dar a conhecer ao rapaz o que se passava, pois eu sabia que ele não era o homem com quem queria casar. Apesar de tudo, na situação em que me encontrava, um amigo, um cúmplice até, era capaz de me fazer jeito.
No entanto, num espaço de tempo relativamente curto, a situação mudou, e foram até os meus tios quem arranjou maneira de me obrigar a aceitar o rapaz de bom grado e cara sorridente. De repente o candidato a namorado passou a ter um “potencial” mais interessante aos olhos dos meus tios, porque se aperceberam de que o podiam usar para proveito próprio. Começaram por lhe pedir que trouxesse vinho da messe dos oficiais, uma vez que em Angola não havia vinho, tinha de ir da metrópole, o que o tornava bastante caro. Como na messe dos oficiais vinho não faltava, o “namorado”, para poder estar comigo, lá aceitava as “encomendas”. Eu, pelo meu lado, ficava furiosa com a situação, porque me sentia “vendida” por uns garrafões de vinho.
Lá fui “obrigada” a namorar o rapaz, pelo benefício que daí resultava para os meus tios, em consequência das coisas que eles podiam obter ou dos “serviços” que passou a fazer em casa dos meus tios. Sim, porque não se satisfeitos com as encomendas da messe dos oficiais, passaram a aproveitá-lo noutros trabalhos de conveniência, sempre que o infeliz não estava de serviço, como pintar a casa, polir mobílias ou outras coisas do género.
O namoro em Braga era uma coisa de brincadeira, pois eu não gostava do rapaz para me casar com ele, ou assumir um namoro a sério. Em Luanda, no entanto, lá me foi imposta a obrigação de dar um ar mais sério à coisa, dado o natural lucro do namoro para o resto da família. Ainda detestei mais isso, pois o rapaz fazia de criado deles, sem qualquer rebuço ou hesitação por parte dos usufrutuários dos bens e serviços. Assim, ao domingo à tarde, quando não íamos ao cinema (tendo o namorado que pagar os bilhetes da minha prima mais nova e do meu primo), lá ficávamos a “namorar” em casa, sentados um de frente para o outro no sofá da sala de estar, o que me era muito desagradável, por várias razões. Primeira e mais importante razão -eu não queria namorar! Depois, na casa dos meus pais, nunca se tinha a obrigação de seguir este ritual de namoro “supervisionado”. Ora eu não suportava estar ali de frente com um rapaz, sempre com alguém por perto, como se fosse pecado estar sentada na sala, sozinha, com um rapaz. Sempre pensei que ninguém faz aquilo que não quer fazer e, se o quiser, não há barreira nem supervisão que impeçam que o que tiver de acontecer, aconteça.


Na Praia Azul


Como disse já, fazia-me jeito um amigo, não um namorado. Por isso, procurei fazer-me aliada dele. Precisava de alguém em quem pudesse confiar, alguém que me ajudasse, até, a libertar-me da censura prévia à correspondência com a minha família na metrópole. Combinei com ele que passaria a ser enviada essa correspondência para o quartel, para depois me ser entregue por ele. Como já estava a ficar habituada, no entanto, o tiro saiu-me pela culatra, novamente. Sempre fui um espírito livre, nunca gostei de amarras, queria um amigo e não um namorado, e comecei a cansar-me daquele namoro de conveniência. Decidi, por isso, acabar com o namoro. Ele não aceitou bem o fim do namoro e fez chantagem comigo, ameaçando-me de contar tudo aos meus tios, pelo que fiquei um pouco refém dessa chantagem. A verdade é que eu não sou pessoa para me deixar levar por chantagens e, perdida por cinco, perdida por dez, o namoro acabou de vez. O namorado, provando a nobreza de carácter a que me habituei em África, contou a um primo meu a combinação que eu tinha com ele para escrever e receber correspondência da família. A revelação deu grande confusão, mas fiquei livre da chantagem e do parvo do namorado.

Vista de hoje, a minha vida familiar em África foi um terror. Mesmo assim, não quero mal algum aos meuss tios e primos porque, na altura, eu queria e tinha de sair daqui, porque sentia que este não era o meu mundo, e eles acabaram por me ajudar a concretizar esse desejo de sair de casa dos meus pais e a possibilitar a concretização do meu sonho: estudar e trabalhar. Como isso só podia acontecer longe dos meus pais, se não tivesse ido para Luanda nunca o poderia ter realizado.

Em compensação, achei Luanda magnífica! Adorei aquela terra, ó se adorei! Quantas saudades no meu coração por aquelas lindas praias de água quente, onde o vento é uma dádiva aquando estamos na praia.
Que saudades de Luanda e do meu cantinho na Praia Azul !...


Um cantinho favorito, na Praia Azul