terça-feira, julho 03, 2007

Fomos tratados como cães vadios!...



A forma como tudo mudou em Luanda, depois do 25 de Abril, é difícil de descrever, aí que a descrição que se segue seja longa, muito longa.

Em Luanda, estudava numa escola nocturna. Eu e algumas das professoras éramos as únicas brancas, mas isso não impedia que, até então, fossemos todas amigas, como é normal numa sala de aulas. Cerca de um mês depois do 25 de Abril, tudo começou a mudar. Passei a ser marginalizada. Fui várias vezes agredida sem saber por quem, com pauladas e socos nas costas, sempre acompanhadas da frase maldita: "vai-te embora ó branca!". Agressões aleatórias a caminho da escola, por colegas negras, sem qualquer razão que a não a denunciada pelo "vai-te embora ó branca!" aconteceram várias vezes. O ambiente começou a ficar bastante hostil. Em Maio do ano seguinte e como faltava pouco para acabar o ano, que eu não queria perder, ia tentando aguentar a situação. Não contava nada em casa, para que não me impedissem de ir à escola.
Recordo o terror vivido numa das minhas deslocações para o liceu. No autocarro, do trabalho para a escola. O autocarro ia abarrotar de cheio,claro que só iam pessoas de cor, eu era a única branca. Pouco depois numa paragem ainda na baixa de Luanda, entrou a minha professora de ciências . O autocarro foi seguindo o seu percurso, e esvaziando. Quando não restavam mais do que uns 20 passageiros, velhos e novos, todos negros, mais eu e a professora, começaram as provocações, com gritos de "morte ao branco" e a fazerem obscenidades ao pé de nós. Permanecemos aterradas, como que paralisadas, eu e a professora, sem sequer ousarmos olhar uma para a outra, procurando não dar qualquer pretexto para que algum iniciasse o ataque. Eram inúmeras as histórias de autocarros desviados para os musseques, com violações e assassinatos, pelo que procurámos evitar qualquer comportamento, gesto ou olhar que pudesse servir de pretexto, mas foi tanto o terror porque que passamos nessa viagem, ainda hoje me lembro com pavor desses momentos, vi a violação e morte na minha frente… Acho que só não aconteceu porque, quer eu quer a professora, ficamos paralisadas e parecíamos umas múmias sem vida, sem reacção, invadidas peloo terror. O coração batia mas o cérebro estava paralisado. Foi a primeira vez na minha vida e única em que paralisei de terror tal foi o pavor infligido sobre nós, durante essa viagem. Quando chegamos à paragem perto da escola, nem nos conseguimos levantar, tal era o terror sentido. No entanto eles, que nos tinham identificado pelas batas, encarregaram-se de nos empurrar porta fora, como quem atira com sacos de batatas, e com umas estaladas e uns "anda branca, por hoje tens sorte!". Depois disto, nunca mais andei de autocarro.

Cheguei muitas vezes ao Liceu para deparar com cartazes a preanunciar explosões para as nove da noite. Sozinha, meio perdida no meio da confusão, voltava para trás, pé ante pé, com medo de ser notada pelos muitos grupos de miúdos, com um máximo de 10 anos, que andavam com varapaus na mão, a perseguir tudo o que mexia. Entravam pelas casas adentro, espancavam quem lá encontrava, saqueavam o que lhes apetecia e depois, mais tarde, iam os mais velhos acabar o serviço - o que consistia em matar quem persistia em lá ficar, mesmo depois dos saques. Num dos dias vi um destes grupos, enquanto me afastava da escola, e imaginei de imediato o meu fim ali mesmo, às mãos de uma dezena de crianças. Por milagre de Deus, eles não me viram, pois iam do outro lado da rua e era noite. Vi-os a entrar para uma das casas da rua e eu só ouvi os gritos dos infelizes que lá viviam. Afastei-me o mais depressa que pude, mas sem correr para não atrair as atenções.
Num outro dia assisti a dois ou três negros a tocarem à campainha de um prédio. Quando alguém veio à janela, dispararam as metralhadoras que traziam. Nem parei para olhar, afastei-me o mais depressa que pude. Soube, depois, que tinham abatido o proprietário de uma farmácia.

Andar na rua era, assim, um risco grande. Valiam-nos as muitas árvores existentes à noite e a pouco iluminação. Por outro lado, era pouco crível uma branca andar pela rua de noite, pelo que eu vestia um casaco preto e uma calças castanhas, tirava a bata da escola, que era branca, e assim era mais difícil reparem em mim.
Era frequente ver passar camiões da tropa, com panos pretos a tapar o interior. Dizia-se que levavam pessoas que tinham sido mortas.
Havia milhares de angolanos brancos que não conheciam Portugal, pois já há gerações que as famílias respectivas lá estavam. Dessas morreram famílias completas, para saciar a sede de vingança. Nunca cá ouvi referência alguma a esta situação.

Lembro-me doutra situação que aconteceu estava eu no escritório onde trabalhava, no Largo Diogo Cão, de frente para o porto marítimo. A certa altura apercebi-me de uma grande confusão no local de onde saiam os camiões e deixei-me estar a observar e tentar perceber o que era. Vi um homem branco a ser agredido à paulada, e ser arrastado. Até o ferro da paragem do autocarro foi arrancado para o agredirem. O homem conseguir meter-se por baixo de um carro estacionado. Entretanto vi parar um carro cheio de negros, conseguiram tirá-lo debaixo do carro onde se tinha escondido meteram-no dentro do carro onde viajavam, e arrancaram em alta velocidade. Os meus colegas que trabalhavam na estiva disseram que era o carro da sede do MPLA, para onde o levaram e onde acabou por ser assassinado. Coisas destas eram constantes. Soube depois que tudo tinha começado quando o infeliz ia a tentar sair do porto com o camião e um grupo de estivadores, de rádio ao ombro, não permitia a passagem do camião. O homem teria parado, e pedido para o deixarem passar. Ora, como podia um branco estar a dar ordens!? Só podia estar a pedir para morrer... e foi o que aconteceu.

Quantas vezes não vinha uma rajada de metralhadora do morro que existia atrás do palácio do governador? Muitos morreram assim, sem que nada os protegesse das balas perdidas. Não havia pão, não havia leite, não havia um mínimo para nos alimentarmos, em lugar algum. Tive alturas em que esperava que uma bala me matasse como quem espera a coisa mais normal da vida, nunca pensei ser possível sobreviver, tal era a a sanha dos ataque aos "brancos". Pensei que ia lá morrer, pois além de toda a violência contra nós, também se guerreavam entre eles e, frequentemente, ameaçavam rebentar os depósitos da gasolina e aí Luanda seria uma bola de fogo.

De todos as situações porque passei houve uma que me marcou e me traumatizou mais. Foi na altura em que o bairro onde morávamos "ficou no meio" de um ataque das forças do MPLA contra as forças da FNLA. Passámos a noite toda com crianças de dois e quatro anos debaixo das camas, com um tiroteio sem fim, lá fora. No nosso jardim estavam forças do MPLA, armados até aos dentes, com lança-roquétes (nome que ouvia chamar aquilo), granadas, tudo que era possível. Foram tantos os tiros que atingiram a nossa casa, mas por Deus nenhuma granada a atingiu. Estávamos todos petrificados de medo, quando nos bateram á porta aí a nossa respiração parou... Um primo meu, de rastos, foi à porta e abriu-a. Os do MPLA pediram uma garrafa de óleo pois as armas estavam a encravar e, de caminho, perguntaram se havia liamba. Face à resposta negativa do meu primo sobre a liamba, eles voltaram para as posições de combate.

A manhã chegou sem que ninguém tivesse conseguido pregar olho. Num acto de desespero o meu primo e pai de duas meninas, saiu de casa fora em direcção ao jardim nas traseiras da casa e foi fazer lume com carvão e aí arranjou os biberões para as filhas, que estavam cheias de fome. Nós continuamos nos esconderijos . Um grupo tropas Portuguesas, penso que da marinha, ia a seguir em alta velocidade pela marginal, quando começou um tiroteio muito forte. Tiveram de parar e correram, saltando os muros do nosso jardim, a deitaram-se no chão. Lembro-me que um, ao cair, bateu num vaso em pedra e acho que deve ter partido qualquer coisa pois, depois de ter abrandado o tiroteio, quando se foram embora, tiveram de levar esse camarada em braços. Os covardes esqueceram-se que estavam lá os compatriotas deles. Fugiram que nem ratos.

Num desse intervalos entre tiroteios, o meu tio disse: "Tudo para os carros!". A correr, quase uns por cima dos outros, fugimos do nosso bairro que estava a ser massacrado e fomos para a baixa de Luanda, para a casa de uns parentes. Nunca mais voltei à Praia do Bispo. Saí de casa com a roupa que tinha e o que me valeu foi uma mala de roupa que tinha mandado, já há algum tempo, por um soldado vizinho.



Antes da viagem de volta à metrópole, trocaram-me 5 mil angolares por 5 mil escudos, pois os angolares não valiam nada fora de Angola. Deixei uma ordem de transferência do meu outro dinheiro para aqui, transferência essa que, até hoje, nunca se completou. Passados uns dias pudemos, finalmente, ir para o aeroporto e arranjar lugar num avião. Foi preciso ter recorrido aos conhecimentos que tinha por trabalhar com as companhias de navegação para conseguirmos os bilhetes. Mas nessa altura eram milhares e milhares os que dormiam no chão, no aeroporto, crianças tudo, sem condições, sem alimentação, á espera de poder conseguir regressar! O que eu vi, meu Deus, quanto desespero.

Saímos de Luanda no dia 9 de Agosto de 1975, ás 22h00. Ao sobrevoar Luanda chorei convulsivamente, porque eu adorava aquela terra, tão linda, tão maravilhosa. Senti, nesse momento, que não voltaria lá mais...

Porquê sair assim? Porquê passar por todo este terror para milhares de pessoas que chamavam a Angola a sua terra? Foram muitos dias meses de um terror que não esquecerei, vivido na primeira pessoa.

Obs. Será difícil para todos os senhores do 25 de Abril de 1974, compreender que o tratamento dado aos expoliados das nossas excolónias foi indigno, e comprender que eles (esses senhores) não merecem qualquer respeito por parte dos que foram lá maltrados e aqui rejeitados e aplidados como (os retornados). Os ricos safam-se sempre quem sofre é sempre o povão...Não acreditam!...Quem era lá rico aqui também continuou a ser rico...Os diamantes estavam para eles á mão de semear. O povo sempre o Povo. É quem paga, as cabaladas .O que noveu o 25 de Abril e 1974 foi a sede do Poder.